O Primo Basílio: Resumo da Obra
CAPÍTULO I
“Tinham dado onze horas no cuco da sala de jantar. Jorge fechou o volume de Luís Figuier que estivera folheando devagar, estirado na velha voltair de marroquim escuro, espreguiçou-se, bocejou e disse:
- Tu não te vais vestir, Luísa?
- Logo.
Ficara sentada à mesa a ler o Diário de Notícias, no seu roupão de manhã de fazenda preta, bordado a sutache, com largos botões de madrepérola; o cabelo louro um pouco desmanchado, com um tom seco do calor do travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabeça pequenina, de perfil bonito; a sua pele tinha a brancura tenra e láctea das louras; com o cotovelo encostado à mesa acariciava a orelha, e, no movimento lento e suave dos seus dedos, dois anéis de rubis miudinhos davam cintilações escarlates.
Tinham acabado de almoçar.
A sala esteirada, alegrava, com o seu teto de madeira pintado a branco, o seu papel claro de ramagens verdes. Era em julho, um domingo, fazia um grande calor; as duas janelas estavam cerradas, mas sentia-se fora o sol faiscar nas vidraças, escaldar a pedra da varanda; havia o silêncio recolhido e sonolento de manhã de missa; uma vaga quebreira amolentava, trazia desejos de sestas ou de sombras fofas debaixo de arvoredos, no campo, ao pé da água; nas duas gaiolas, entre as bambinelas de cretone azulado, os canários dormiam; um zumbido monótono de moscas arrastava-se por cima da mesa, pousava no fundo das chávenas sobre o açúcar mal derretido, enchia toda a sala de um rumor dormente.
Jorge enrolou um cigarro, e muito repousado, muito fresco na sua camisa de chita, sem colete, o jaquetão de flanela azul aberto, os olhos no teto, pôs-se a pensar na sua jornada ao Alentejo. Era engenheiro de minas, no dia seguinte devia partir para Beja, para Évora, mais para o sul até São Domingos; e aquela jornada, em julho contrariava-o como uma interrupção, afligia-o como uma injustiça. Que maçada por um verão daqueles! Ir dias e dias sacudido pelo chouto de um cavalo de aluguel, por esses descampados do Alentejo que não acabam nunca, cobertos de um rastolho escuro, abafados num sol baço, onde os moscardos zumbem! Dormir nos montados, em quartos que cheiram a tijolo cozido, ouvindo em redor, na escuridão da noite tórrida, grunhir as varas dos porcos! A todo o momento sentir entrar pelas janelas, passar no ar o bafo quente das queimadas! E só!
Tinha estado até então no ministério, em comissão. Era a primeira vez que se separava de Luísa; e perdia-se já em saudades daquela salinha, que ele mesmo ajudara a forrar de papel novo nas vésperas do seu casamento, e onde, depois das felicidades da noite, os seus almoços se prolongavam em tão suaves preguiças!”
Logo, no início da narrativa, notam-se as características inconfundíveis da linguagem e estilo de Eça de Queirós. A partir de construções sintáticas de acento nitidamente lusitano, consegue atingir uma graça e uma leveza, que dão à sua prosa uma espontaneidade só conseguida com muito esforço. O emprego de estrangeirismos, principalmente expressões em francês e italiano, chega a parecer natural, quase espontâneo, graças à simplicidade e naturalidade das construções sintáticas.
O autor apresenta os espaços com grande competência, demorando-se muitas vezes em descrições que enriquecem muito o romance.
Essa demora nas descrições é importante também no fluxo da narrativa. Nos momentos mais impressionistas da obra, em que os sentimentos das personagens se confundem com o ambiente, o tempo parece ficar como que “suspenso”, tomando o ritmo da narrativa, artificialmente lento, pois, na verdade, toda a ação se passa em pouco tempo.
A minuciosidade descrita parecer colocar o leitor dentro da cena, como uma personagem muda e atenta, recriando de forma viva o cenário e as personagens, estas últimas adquirem assim uma autenticidade indiscutível, ainda que configurem, na maior parte dos casos, meros tipos sociais.
A história inicia numa tarde de domingo, do mês de julho. Jorge descansa após o almoço. Pensa na viagem a trabalho que irá fazer pela região do Alentejo. Desagrada-lhe ter que abandonar a casa onde vivia desde antes de sua mãe morrer. Além disso, é a primeira vez que viaja depois que se casou com Luísa.
Jorge nunca fora sentimental, homem de hábitos simples, gênio manso, tinha horror a dívidas, e sentia-se feliz.
Quando sua mãe morreu, não se acostumou com a solidão e decidiu casar.
“Conheceu Luísa, no verão, à noite, no Passeio. Apaixonou-se pelos seus cabelos louros, pela sua maneira de andar, pelos seus olhos castanhos muito grandes. No inverno seguinte foi despachado, e casou. Sebastião, o seu íntimo, o bom Sebastião, o Sebastiarrão, tinha dito, com uma oscilação grave da cabeça, esfregando vagarosamente as mãos:
- Casou no ar! Casou um bocado no ar!
Estavam casados havia três anos.”
Luísa, que lê jornal, interrompe os pensamentos de Jorge para dizer-lhe que lia a notícia que o seu primo Basílio retornaria a Lisboa, depois de ter viajado pela Europa.
"Deve chegar por estes dias a Lisboa, vindo de Bordéus, o Sr. Basílio de Brito, bem conhecido da nossa sociedade. Sua Excelência que, como é sabido, tinha partido para o Brasil, onde se diz reconstituíra a sua fortuna com um honrado trabalho, anda viajando pela Europa desde o começo do ano passado. A sua volta à capital é um verdadeiro júbilo para os amigos de Sua Excelência que são numerosos."
Luísa reclama do calor e Jorge pergunta pelos seus coletes brancos. Luísa chama a criada Juliana e é informada que os mesmos não estão prontos.
Depois da saída da empregada, Jorge e Luísa têm uma pequena discussão a respeito de Juliana: a patroa diz que está a tomar ódio daquela criatura; acha-a antipática e não confia nela, mas Jorge acha-a uma pobre coitada e tem uma dívida de gratidão com ela, por esta ter dedicadamente tomado conta de sua tia Virgínia até a morte.
“- E, enfim, minha filha, a maneira como ela se portou na doença da tia Virgínia... Foi um anjo para ela! - Repetiu com solenidade: - De dia, de noite, foi um anjo para ela! Estamos-lhe em dívida, minha filha!”
Jorge se prepara para sair e Luísa pede-lhe que traga alguns bolos para D. Felicidade; apanhe o chapéu em Madame François; vá ao livreiro, mas lembra-se de que está fechado e recomenda que não volte tarde.
Luísa sente preguiça de vestir-se, prefere estar numa banheira de mármore cor-de-rosa, em água morna ou numa rede a ouvir música. Começa a pensar futilidades e procura na estante “A Dama das Camélias”, romance de Alexandre Dumas Filho, famoso escritor do romantismo francês. Nesse livro, a heroína Margarida abandona o seu amado e acaba morrendo de sofrimento por esse fato.
“Era a Dama das camélias. Lia muitos romances; tinha uma assinatura, na Baixa, ao mês. Em solteira, aos dezoito anos entusiasmara-se por Walter Scott e pela Escócia; desejara então viver num daqueles castelos escoceses, que têm sobre as ogivas os brasões do clã, mobilados com arcas góticas e troféus de armas, forrados de largas tapeçarias, onde estão bordadas legendas heróicas, que o vento do lago agita e faz viver; e amara Ervandalo, Morton e lvanhoé, ternos e graves, tendo sobre o gorro a pena de águia, presa ao lado pelo cardo de Escócia de esmeraldas e diamantes. Mas agora era o moderno que a cativava: Paris, as suas mobílias, as suas sentimentalidades. Ria-se dos trovadores, exaltara-se por Mr. de Camors; e os homens ideais apareciam-lhe de gravata branca, nas ombreiras das salas de baile, com um magnetismo no olhar, devorados de paixão, tendo palavras sublimes. Havia uma semana que se interessava por Margarida Gautier; o seu amor infeliz dava-lhe uma melancolia enevoada; via-a alta e magra, com o seu longo xale de caxemira, os olhos negros cheios de avidez da paixão e dos ardores da tísica; nos nomes mesmo do livro - Júlia Duprat, Armando, Prudência, achava o sabor poético de uma vida intensamente amorosa; e todo aquele destino se agitava, como numa música triste, com ceias, noites delirantes, aflições de dinheiro, e dias de melancolia no fundo de um cupê quando nas avenidas do Bois, sob um céu pardo e elegante, silenciosamente caem as primeiras neves.”
Em seguida, Luísa lembra-se da notícia do jornal, a chegada do primo Basílio, seu primeiro namorado.
“Tinha ela então dezoito anos! Ninguém o sabia, nem Jorge, nem Sebastião...
De resto fora uma criancice; ela mesma, às vezes, ria, recordando as pieguices ternas de então, certas lágrimas exageradas! Devia estar mudado o primo Basílio. Lembrava-se bem dele - alto, delgado, um ar fidalgo, o pequenino bigode preto levantado, o olhar atrevido, e um jeito de meter as mãos nos bolsos das calças fazendo tilintar o dinheiro e as chaves!”
Lembra-se de que o primo era muito vaidoso, bonito e elegante e de que o namoro terminara porque o primo partira para o Brasil à procura de fortuna, depois que seus negócios faliram em Lisboa.
“Passou um ano. Uma manhã, depois de um grande silêncio de Basílio, recebeu da Bahia uma longa carta, que começava: "Tenho pensado muito e entendo que devemos considerar a nossa inclinação como uma criancice..."
Viveu triste durante meses. Tinham passado três anos quando conheceu Jorge.
“Ao princípio não lhe agradou. Não gostava dos homens barbados; depois percebeu que era a primeira barba, fina, rente, muito macia decerto; começou a admirar os seus olhos, a sua frescura. E sem o amar sentia ao pé dele como uma fraqueza, uma dependência e uma quebreira, uma vontade de adormecer encostada ao seu ombro, e de ficar assim muitos anos, confortável, sem receio de nada. Que sensação quando ele lhe disse: "Vamos casar, hem!"Viu de repente o rosto barbado, com os olhos muito luzidios, sobre o mesmo travesseiro, ao pé do seu! Fez-se escarlate, Jorge tinha-lhe tomado a mão; ela sentia o calor daquela palma larga penetrá-la, tomar posse dela; disse que sim; ficou como idiota, e sentia debaixo do vestido de merino dilatarem-se docemente os seus seios. Estava noiva, enfim! Que alegria, que descanso para a mamã!”
Era o seu marido, era novo, era forte, era alegre; pôs-se a adorá-lo.
“[...] Pôs-se a pensar, o que teria sucedido se tivesse casado com o primo Basílio. Que desgraça, hem! Onde estaria? Perdia-se em suposições de outros destinos, que se desenrolavam, como panos de teatro: via-se no Brasil, entre coqueiros, embalada numa rede, cercada de negrinhos, vendo voar papagaios!”
A criada reaparece para anunciar a visita de Leopoldina, amiga íntima de Luísa. Ela repreende Juliana por ter deixado a amiga entrar.
Sabia-se que tinha amantes, dizia-se que tinha vícios. Jorge odiava-a. E dissera muitas vezes a Luísa: "Tudo, menos a Leopoldina!"
“Leopoldina tinha então vinte e sete anos. Não era alta, mas passava por ser a mulher mais bem feita de Lisboa. Usava sempre os vestidos muito colados, com uma justeza que acusava, modelava o corpo como uma pelica, sem largueza de roda, apanhados atrás. Dizia-se dela com os olhos em alvo: "é uma estátua, é uma Vênus!"
Tinha ombros de modelo, de uma redondeza descaída e cheia; sentia-se nos seus seios, mesmo através do corpete, o desenho rijo e harmonioso de duas belas metades de limão; a linha dos quadris rica e firme, certos quebrados vibrantes de cintura faziam voltar os olhares acesos dos homens. A cara era um pouco grosseira; as asas do nariz tinham uma dilatação carnuda; na pele, muito fina, de um trigueiro quente e corado, havia sinaizinhos desvanecidos de antigas bexigas. A sua beleza eram os olhos, de uma negrura intensa, afogados num fluido, muito quebrados, com grandes pestanas.”
Luísa recebe a amiga, porque tinha por ela certa admiração: desculpava-lhe os vários amantes, considerando que a amiga era infeliz no casamento e, como as heroínas dos romances, procurava uma grande paixão. Além disso, Luísa excitava-se envergonhadamente com as histórias picantes que a amiga contava.
A amiga conta a Luísa do fim do seu último romance e do início de um novo, pede o endereço de uma costureira e se vai.
Jorge descobre através de Juliana da visita de Leopoldina e repreende Luísa.
“- Minha rica filha, é que todo o mundo a conhece. É a Quebrais! É a Pão e Queijo! É uma vergonha!
Citava-lhe os seus amantes, exasperado: o Carlos Viegas, o magro, de bigode caído, que escrevia comédias para o Ginásio! O Santos Madeira, o picado das bexigas, com uma gaforinha! O Melchior Vadio, um gingão desossado, com um olhar de carneiro morto, sempre a fumar numa enorme boquilha! O Pedro Câmara, o bonito! O Mendonça dos calos! Tutti quanti!”
Luísa promete a Jorge que vai evitar ao máximo à amiga, mas fica furiosa com a criada.
“- Minha querida filha, esta nossa casinha é tão honesta que é uma dor de alma ver entrar essa mulher aqui, com o cheiro de feno, do cigarro e do resto!... Ma, di questo non parlaremo più, o donna mia! À sopa!”
CAPÍTULO II
“Aos domingos à noite havia em casa de Jorge uma pequena reunião, uma cavaqueira, na sala, em redor do velho candeeiro de porcelana cor-de-rosa. Vinham apenas os íntimos. O "Engenheiro", como se dizia na rua, vivia muito ao seu canto, sem visitas. Tomava-se chá, palrava-se. Era um pouco à estudante. Luísa fazia croché, Jorge cachimbava.”
O primeiro a chegar era Julião Zuzarte, um parente muito afastado de Jorge e seu antigo condiscípulo nos primeiros anos da Politécnica.
Tinha o curso de cirurgião da Escola, mas por falta de chance, ou despreparo, nunca conseguira prosperar na vida, apesar de sonhar o tempo todo com um bom salário e uma vida luxuosa.
“Por isso não "arredava pé"; e esperava, com a tenacidade do plebeu sôfrego, uma clientela rica, uma cadeira na Escola, um cupê para as visitas, uma mulher loura com dote. Tinha certeza do seu direito a estas felicidades, e como elas tardavam a chegar ia-se tornando despeitado e amargo; andava amuado com a vida; cada dia se prolongavam mais os seus silêncios hostis, roendo as unhas; e, nos dias melhores, não cessava de ter ditos secos, tiradas azedadas - em que a sua voz desagradável caía como um gume gelado.”
Luísa não gostava dele, principalmente por causa de suas roupas velhas, sua caspa e seu pedantismo, mas Jorge achava-o espirituoso e inteligente. Julião, apesar de invejar e achar injustiça do destino a vida confortável de Jorge, fazia-se passar por bom amigo.
“Às nove horas, ordinariamente, entrava D. Felicidade de Noronha. Vinha logo da porta com os braços estendidos, o seu bom sorriso dilatado. Tinha cinquenta anos, era muito nutrida, e, como sofria de dispepsia e de gases, àquela hora não se podia espartilhar e as suas formas transbordavam. Já se viam alguns fios brancos nos seus cabelos levemente anelados, mas a cara era lisa e redonda, cheia, de uma alvura baça e mole de freira; nos olhos papudos, com a pele já engelhada em redor, luzia uma pupila negra e úmida, muito móbil; e aos cantos da boca uns pêlos de buço pareciam traços leves e circunflexos de uma pena muito fina. Fora a íntima amiga da mãe de Luísa, e tomara aquele hábito de vir ver a pequena aos domingos. Era fidalga, dos Noronhas de Redondela, bastante aparentada em Lisboa, um pouco devota, muito da Encarnação.”
Nenhum dos seus amores de juventude dera certo, e todos os seus desejos concentrados ao longo dos anos pareciam ter se juntado em uma admiração sem fronteiras pelo Conselheiro Acácio.
“Havia cinco anos que D. Felicidade o amava. Em casa de Jorge riam-se um pouco com aquela chama. Luísa dizia: "Ora! E uma caturrice dela!" Viam-na corada e nutrida, e não suspeitavam que aquele sentimento concentrado, irritado semanalmente, queimando em silêncio, a ia devastando como uma doença e desmoralizando como um vício. Todos os seus ardores até aí tinham sido inutilizados. Amara um oficial de lanceiros que morrera, e apenas conservava o seu daguerreótipo. Depois apaixonara-se muito ocultamente por um rapaz padeiro, da vizinhança, e vira-o casar. Dera-se então toda a um cão, o Bilro; uma criada despedida deu-lhe por vingança rolha cozida; o Bilro rebentou, e tinha-o agora empalhado na sala de jantar. A pessoa do Conselheiro viera de repente, um dia, pegar fogo àqueles desejos, sobrepostos como combustíveis antigos. Acácio tornara-se a sua mania: admirava a sua figura e a sua gravidade, arregalava grandes olhos para a sua eloquência, achava-o numa "linda posição". O Conselheiro era a sua ambição e o seu vício! Havia, sobretudo nele uma beleza, cuja contemplação demorada a estonteava como um vinho forte: era a calva. Sempre tivera o gosto perverso de certas mulheres pela calva dos homens, e aquele apetite insatisfeito inflamara-se com a idade. Quando se punha a olhar para a calva do Conselheiro, larga, redonda, polida, brilhante às luzes, uma transpiração ansiosa umedecia-lhe as costas, os olhos dardejavam-lhe, tinha uma vontade absurda, ávida de lhe deitar as mãos, palpá-la, sentir-lhe as formas, amassá-la, penetrar-se nela! [...] A indiferença do Conselheiro irritava-a mais: nenhum olhar, nenhum suspiro, nenhuma revelação amorosa e comovida!”
Um dia Luísa ficou atônita, sentindo D. Felicidade agarrar-lhe o pulso com a mão úmida, e dizer-lhe baixo, os olhos cravados no Conselheiro:
“- Que regalo de homem!”
O Conselheiro Acácio era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito.
“O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até á calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos que de uma orelha à outra lhe faziam colar por trás da nuca - e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo, e as orelhas grandes muito despegadas do crânio.
Fora, outrora, diretor-geral do Ministério do Reino, e sempre que dizia "El-rei!" erguia-se um pouco na cadeira. Os seus gestos eram medidos, mesmo a tomar rapé. Nunca usava palavras triviais; não dizia vomitar, fazia um gesto indicativo e empregava restituir. Dizia sempre "o nosso Garrett, o nosso Herculano". Citava muito. Era autor. “
Os convidados conversavam sobre a viagem de Jorge, quando chega Ernestinho Ledesma, primo de Jorge.
“Pequenino, linfático, os seus membros franzinos, ainda quase tenros, davam-lhe um aspecto débil de colegial; o buço, delgado, empastado em cera mostacha, arrebitava-se aos cantos em pontas afiadas como agulhas; e na sua cara chupada, os olhos repolhudos amorteciam-se com um quebrado langoroso. Trazia sapatos de verniz com grandes laços de fita; sobre o colete branco, a cadeia do relógio sustentava um medalhão enorme, de ouro, com frutos e flores esmaltados em relevo. Vivia com uma atrizita do Ginásio, uma magra, cor de melão, com o cabelo muito riçado, o ar tísico - e escrevia para o teatro. Tinha traduções, dos originais num ato, uma comédia, em calembures. Ultimamente trazia em ensaios nas Variedades uma obra considerável, um drama em cinco atos, a Honra e paixão.”
Ernestinho estava desesperado e atarefado. O dramaturgo reclama que o empresário obrigara-o a refazer todo o final de um ato. Por insistência do Conselheiro, Enstinho esboçou a síntese do enredo de sua peça:
“- Era uma mulher casada. Em Sintra tinha-se encontrado com um homem fatal, o Conde de Monte Redondo. O marido, arruinado, devia cem contos de réis ao jogo. Estava desonrado, ia ser preso. A mulher, louca, corre a umas ruínas acasteladas, onde habita o conde, deixa cair o véu, conta-lhe a catástrofe. O conde lança o seu manto aos ombros, parte, chega no momento em que os beleguins vão levar o homem. - É uma cena muito comovente - dizia - é de noite, ao luar! - O conde desembuça-se, atira uma bolsa de ouro aos pés dos beleguins, gritando-lhes: Saciai-vos, abutres!...(...) o Conde de Monte-Redondo e a mulher amam-se, o marido descobre, arremessa todo o seu outro aos pés do Conde, e mata a esposa.
- Atira-a ao abismo. E no quinto ato. O conde vê, corre, atira-se também. O marido cruza os braços e dá uma gargalhada infernal. Foi assim que eu imaginei a coisa!”
O produtor exigia que se mudasse a cena para uma sala e que a mulher fosse perdoada, para que se adequasse a peça ao gosto do público.
Ernestinho começa a ler o novo final para os presentes, mas é interrompido pela chegada de Juliana com o chá. Conselheiro Acácio concorda com o empresário, enquanto Jorge diz que é obrigação do primo matar, em qualquer lugar, a mulher – infidelidade é crime imperdoável! D. Felicidade acredita que Jorge está brincando, mas ele responde:
“- Está enganada, D. Felicidade - disse Jorge, de pé diante dela. - Falo sério e sou uma fera! Se enganou o marido, sou pela morte. No abismo, na sala, na rua, mas que a mate. Posso lá consentir que, num caso desses, um primo meu, uma pessoa da minha família, do meu sangue, se ponha a perdoar como um lamecha! Não! Mata-a! É um princípio de família. Mata-a quanto antes!”
Luísa, questionada por D. Felicidade sobre a opinião do marido, não se pronuncia.
São interrompidos pela chegada do Sebastião, “o grande Sebastião, o Sebastiarrão, Sebastião tronco de árvore - o íntimo, o camarada, o inseparável de Jorge desde o Latim, na aula de Frei Libório aos paulistas. Era um homem baixo e grosso, todo vestido de preto, com um chapéu mole desabado na mão. Começava a perder um pouco na frente os seus cabelos castanhos e finos. Tinha a pele muito branca, a barba alourada e curta. Veio sentar-se ao pé de Luísa.”
Sebastião vinha do circo e aparecia para despedir-se do amigo. Jorge acaba por arrastá-lo para uma conversa particular no escritório. Fala ao amigo da visita que Luísa recebera de Leopoldina, confessa-se preocupado. Sebastião concorda, principalmente porque a vizinhança era gente de baixo nível, sem ocupação e especialista em falar da vida alheia.
Jorge pede, então, ao amigo, que, enquanto estivesse fora, em viagem, tratasse de aparecer sempre na casa, que vigiasse sua esposa e, caso acontecesse algo ou Leopoldina reaparecesse, falasse com Luísa, aconselhasse-a e repreendesse-a. Sebastião promete a Jorge que fará isso.
Jorge tinha uma grande tristeza por não ter tido ainda um filho. Antes de casar-se já sonhava aquela felicidade.
“Vinha-lhe, às vezes, um medo de morrer sem ter tido aquela felicidade completadora!”
Da sala vem o som da voz de Luísa, que tocava piano e cantava. Julião entra no escritório para de despedir, Jorge dá-lhe a caixa de charutos.
Os convidados logo começam, um por um, a ir embora. Sobre apenas Sebastião que, exímio pianista, toca enquanto Luísa e Jorge namoram no sofá e falam da viagem dele. Por fim, Sebastião se vai.
Luísa e Jorge ficam na varanda, conversando sobre o filho que sonhavam ter, quando aparece Juliana, que vem saber a que horas deve acordar a patroa.
Ao deitar-se, Luísa quase chora nos braços de Jorge por saber que ele partiria no dia seguinte.
CAPÍTULO III
“Havia doze dias que Jorge tinha partido e, apesar do calor e da poeira, Luísa vestia-se para ir á casa de Leopoldina. Se Jorge soubesse não havia de gostar não. Mas estava tão farta de estar só! Aborrecia-se tanto! De manhã ainda tinha os arranjos à costura, a toalete, algum romance... Mas de tarde!”
Enquanto se veste, a criada Juliana pede-lhe permissão para ir ao médico. Sentia “enjôos, minha senhora, peso no coração. Passei a noite em claro. Estava mais amarela, o olhar muito pisado, a face envelhecida. Trazia um vestido de merino preto escoado, e a cuia da semana de cabelos velhos.”
Luísa concede a permissão, mas determina que arranje tudo antes. Juliana avisa Joana, a cozinheira, de que a casa ficará por conta dela.
Joana aproveitava essas ocasiões para colocar para dentro da casa um rapaz que trabalhava na marcenaria vizinha, Pedro, seu amante.
“Como não podia sair à semana, metia-o em casa, pela porta de trás, quando estava só; estendia então na varanda, para dar sinal, o velho tapete desbotado, onde ainda se percebiam os paus de um veado.”
Juliana sentia inveja desse namoro da cozinheira, mas a elogiava e mantinha o romance de Joana em segredo para arranjar caldinhos e bifes às escondidas.
A criada, furiosa com Luísa por não ter dado muito importância às suas dores, começa a varrer violentamente a escada da varanda quando é surpreendida por um senhor “que lhe pareceu estrangeirado. Era trigueiro, alto, tinha um bigode pequeno levantado, um ramo na sobrecasaca azul, e o verniz dos seus sapatos resplandecia.”
Pede para chamá-la, mas não revela seu nome. Luísa vai recebê-lo já vestida para sair. Era seu primo Basílio.
“Houve um shake-hands demorado, um pouco trêmulo. Estavam ambos calados: ela com todo o sangue no rosto, um sorriso vago; ele fitando-a muito, com um olhar admirado. Mas as palavras, as perguntas vieram logo, muito precipitadamente: - Quando tinha ele chegado? Se sabia que ele estava em Lisboa? Como soubera a morada dela?
Chegara na véspera no paquete de Bordéus. Perguntara no ministério; disseram-lhe que Jorge estava no Alentejo, deram-lhe a adresse...”
Luísa faz várias perguntas. Basílio elogia a beleza da antiga namorada. Luísa quis saber o que ele tinha feito e se demoraria por lá.
Basílio fala de suas viagens a Roma, à Terra Santa, a Constantinopla, a Paris. Conversam sobre a morte da mãe de Luísa e Basílio lamenta muito a morte da tia Jojó e promete visitar o seu jazigo. Falam sobre a quinta onde passaram a juventude, e, em cada, lembrança, Basílio tenta invocar antigos momentos de intimidade entre os dois.
“Basílio torcia a ponta do bigode devagar; e vendo-a descalçar as luvas:
- Era eu antigamente quem te calçava e descalçava as luvas... Lembras-te?... Ainda tenho esse privilégio exclusivo, creio eu...
Ela riu-se.
- Decerto que não...
Basílio disse então, lentamente, fitando o chão:
- Ah! Outros tempos!
E pôs-se a falar de Colares: a sua primeira ideia, mal chegara, tinha sido tomar uma tipóia e ir lá; queria ir ver a quinta; ainda existiria o balouço debaixo do castanheiro? Ainda haveria o caramanchão de rosinhas brancas, ao pé do Cupido de gesso que tinha uma asa quebrada?...”
(...)
“Luísa olhava-o. Achava-o mais varonil, mais trigueiro. No cabelo preto anelado havia agora alguns fios brancos; mas o bigode pequeno tinha o antigo ar moço, orgulhoso e intrépido; os olhos quando ria, a mesma doçura amolecida, banhada num fluido. Reparou na ferradura de pérola da sua gravata de cetim preto, nas pequeninas estrelas brancas bordadas nas suas meias de seda. A Bahia não o vulgarizara. Voltava mais interessante!”
Em cada lembrança, Basílio tenta invocar antigos momentos de intimidade entre os dois. Luísa, constrangida, tenta falar das viagens. Basílio apenas sabe comparar Portugal com outros lugares por onde passou para falar mal de eu país.
Basílio anuncia que trouxe presentes: um rosário e uma luva de verão, “de peau de suede, de oito botões. Luvas decentes. Vocês aqui usam umas luvitas de dois botões, a ver-se o punho, um horror!”
Passa, depois a criticar as mulheres de Lisboa, que se vestem muito mal. Fala mal também da comida: “Só em Paris se come.”
Luísa voltava entre os dedos o seu medalhão de ouro, preso ao pescoço por uma fita de veludo preto e perguntava sobre Paris.
Basílio respondia:
“Um ano divino. Tinha um apartamento lindíssimo, que pertencera a Lord Flamouth, Rue Saint Florentin; tinha três cavalos...”
Em seguida, Basílio pergunta sobre o retrato no medalhão e quando Luísa diz que é seu marido, ele deseja conhecê-lo.
Luísa abre o medalhão. Ele debruça-se; tinha o rosto quase sobre o peito dela. Luísa sente o aroma fino que vinha de seus cabelos, afasta-se e alega que está sentindo calor.
“O olhar de Basílio corria-lhe as linhas do corpo; e com a voz muito íntima, os cotovelos sobre os joelhos, o rosto erguido para ela:
- Mas, francamente, dize cá, pensaste que eu te viria ver?
- Ora essa! Realmente, se não viesses zangava-me. És o meu único parente... O que tenho pena é que meu marido não esteja...
- Eu - acudiu Basílio - foi justamente por ele não estar...
Luísa fez-se escarlate. Basílio emendou logo, um pouco corado também:
- Quero dizer... talvez ele saiba que houve entre nós...
Ela interrompeu:
- Tolices! Éramos duas crianças. Onde isso vai!
- Eu tinha vinte e sete anos - observou ele, curvando-se.
Ficaram calados, um pouco embaraçados. Basílio cofiava o bigode, olhando vagamente em redor.”
Por fim, Basílio vai-se embora (estava hospedado no Hotel Central), prometendo voltar no dia seguinte com presentes que comprara para a prima; beija-lhe a mão e sai.
No caminho para o hotel, Basílio pensa em como a prima está bonita.
"E eu, pedaço de asno, que estava quase decidido a não a vir ver! Está de apetite! Está muito melhor! E sozinha em casa; aborrecidinha talvez!..."
Luísa passou o resto da tarde e da noite pensando em Basílio e tentando lembrar-se de seu marido.
Sente-se aliviada por estar bem vestida quando da visita do primo e despertou o desejo de viajar, visitar países que conhecia dos romances. Tudo aquilo “dava-lhe a ideia de uma outra existência mais poética, mais própria para os episódios do sentimento”.
Imagina como devia ser diferente e interessante a vida de Basílio! Vai tocar um pouco o piano enquanto pensa que o primo voltaria no dia seguinte e que devia estar bem vestida e arrumada.
Juliana chegou do médico e procurou a patroa para acender as luzes do quarto. Está encolhida, com um ar de fantasma, andava arrastando os chinelos pelam casa. Luísa diz que ela, daquela maneira, parecia-se com a morte. A criada sai do quarto, ofendida e calada. Sobe para o seu quarto, no sótão pequeno e baixo, recebendo o dia todo o sol nas telhas, cheio de percevejos e insetos. A criada sofria muito para dormir, revirava-se na cama pensando em como a sua vida fora uma sucessão de amarguras.
“Foi para o quarto. Rezou, apagou a luz. Um calor mole e contínuo caía do forro; começou a faltar-lhe o ar; tornou a abrir o postigo, mas o bafo quente que vinha dos telhados enjoava-a: e era assim todas as noites, desde o começo do estio! Depois as madeiras velhas fervilhavam de bicharia! Nunca, nunca, nas casas que servira, tinha tido um quarto pior. Nunca!
A cozinheira começou a ressonar ao lado. E acordada, às voltas, com aflições no coração, Juliana sentia a vida pesar-lhe, com uma amargura maior!"
Nascera em Lisboa. O seu nome era Juliana Couceiro Tavira. Sua mãe fora engomadeira; e desde pequena tinha conhecido em casa um sujeito, a quem chamavam na vizinhança - o "Fidalgo", a quem sua mãe chamava - o senhor D. Augusto. Vinha todos os dias, de tarde no verão, no inverno de manhã, para a saleta onde sua mãe engomava, e ali estava horas sentado no poial da janela que dava para um quintalejo, fumando cachimbo, cofiando em silêncio um enorme bigode preto. Como o poial era de pedra, punha-lhe em cima, com muito método, uma almofada de vento, que ele mesmo soprava. Era calvo, e trazia ordinariamente uma quinzena de veludo castanho e chapéu alto branco. Às seis horas levantava-se, esvaziava a almofada, estava um bocado a esticar as calças para cima, e saía, com a sua grossa bengala de cana-da-índia debaixo do braço, gingando da cinta. Ela e sua mãe iam então jantar na mesinha de pinho da cozinha debaixo de um postigo, diante do qual se balouçavam, de verão e de inverno, galhos magros de uma árvore triste.
À noite o senhor D. Augusto voltava; trazia sempre um jornal; sua mãe fazia-lhe chá e torradas, servia-o, toda enlevada nele. Muitas vezes Juliana a vira chorar de ciúmes.
Um dia uma vizinha má, a quem ela não quisera ajudar a lavar a roupa, enfureceu-se, e atirando-lhe injúrias dos degraus da porta - gritou-lhe que sua mãe era uma desavergonhada, e que seu pai estava na África por ter morto o Rei de Copos!
Pouco tempo depois foi servir. Sua mãe morreu daí a meses, com uma doença de útero. Juliana só uma vez tornou a ver o senhor D. Augusto - uma tarde, com uma opa roxa, lúgubre, na procissão de Passos!
"Servia, havia vinte anos. Como ela dizia, mudava de amos, mas não mudava de sorte. Vinte anos a dormir em cacifos, a levantar-se de madrugada, a comer os restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças e as más palavras das senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital quando vinha a doença, a esfalfar-se quando voltava a saúde!... Era demais! Tinha agora dias em que só de ver o balde das águas sujas e o ferro de engomar se lhe embrulhava o estômago. Nunca se acostumara a servir. Desde rapariga a sua ambição fora ter um negociozito, uma tabacaria, uma loja de capelista ou de quinquilharias, dispor, governar, ser patroa; mas, apesar de economias mesquinhas e de cálculos sôfregos, o mais que conseguira juntar foram sete moedas ao fim de anos; tinha então adoecido; com o horror do hospital fora tratar-se para casa de uma parenta; e o dinheiro, ai! Derretera-se! No dia em que se trocou a última libra, chorou horas com a cabeça debaixo da roupa.
Ficou sempre adoentada desde então; perdeu toda a esperança de se estabelecer. Teria de servir até ser velha, sempre, de amo em amo! Essa certeza dava-lhe uma desconsolação constante. Começou a azedar-se.
E depois não tinha "jeito", não sabia tirar partido das casas; via companheiras divertir-se, vizinhar, janelar, bisbilhotar, sair aos domingos às hortas e aos retiros; levar o dia cantando, e quando as patroas iam ao teatro, abrir a porta aos derriços - e patuscar pelos quartos! Ela não. Sempre fora embezerrada. Fazia a sua obrigação, comia, ia estirar-se sobre a cama; e aos domingos, quando não passeava, encostava-se a uma janela, com o lenço sobre o peitoril para não roçar as mangas, e ali estava imóvel, a olhar, com o seu broche de filigrana e a cuia dos dias santos! (...) E nunca tivera um homem; era virgem. Fora sempre feia, ninguém a tentara; e, por orgulho, por birra, com receio de uma desfeita, não se oferecera, como vira muitas, claramente.”
Depois de certo tempo de trabalho, Juliana sentia enjôos só de olhar para o balde de água suja ou o ferro de passar roupa. Além disso, “as crianças tomavam-lhe birra; as outras criadas se estavam chilrando, calavam-se, mal a sua figura esguia aparecia”, punham-lhe alcunhas: "Isca Seca", "Fava Torrada", "Saca-Rolhas".
Começou a brigar frequentemente nos empregos até que sua inculcadeira, espécie de informante, pessoa que dá conselhos ou passa informações profissionais sobre a vida de alguém, Tia Vitória, lhe disse para tomar jeito, porque poderia ficar sem emprego.
Fazia-se de coitada e interessada nos problemas da casa, mas por dentro passou a cultivar um ódio azedo por todas as suas patroas. Sua felicidade era ver que algo desse errado na vida delas: um cobrador que lhes viesse bater à porta, uma chuva inesperada em dia de passeio, a morte de parentes e até de filhos, a morte delas próprias. Patroas, para ela, não passavam todas de uma récua.
Era muito curiosa, arrastava-se por detrás das portas, espreitando conversas. Também gostava de comer bem, escondida dos amos, na despensa, e até de beber os seus traguinhos.
Quando começou a cuidar da tia de Jorge, a Srª. Virgínia de Lemos pensou que se arranjara na vida. A velha estava para morrer a qualquer momento, e Juliana tratava-a com uma devoção e um esforço que lhe mereciam os mais sinceros elogios. Juliana acreditava sinceramente que D. Virgínia se lembraria dela no testamento. Começou a sonhar com a sua pequena fortuna. Mas a velha morreu e ela sequer foi citada no testamento.
Juliana teve uma febre de decepção. Jorge pagou-lhe o hospital e, como gratidão pelos serviços que ela prestara à tia, tomou-a como criada.
A criada odiava a casa de Jorge, sentia-se roubada por ele. Mas lá pelo menos havia os caldos que lhe preparava Joana, as pinguinhas e doces roubados da despensa, tinha sua folga aos domingos e podia pelo menos satisfazer o seu único vício: o dos sapatos. Achava os seus pés lindos, e não se cansava de comprar para eles botas de todos os tipos; adorava ir ao Passeio Público aos domingos, com vestidos curtos, para mostrá-las!
CAPÍTULO IV
No dia seguinte, Juliana acordou bem mais disposta. Passara toda a tarde a limpar a sala onde Basílio espalhara cinzas de fumo por toda a parte. Lá pelas três horas da tarde, Juliana entrou na cozinha e sentou-se numa cadeira. Reclamou com Joana de seu estado de saúde. Não conseguira dormir e trabalhara muito para deixar a sala em ordem. Joana serve-lhe o caldo. Juliana ouve a campainha da porta, mas não se mexe. A campainha volta a tinir mais duas vezes, sem que ela se mova. Luísa grita insistentemente para que abra e Juliana espanta-se logo na escada porque Luísa está de roupa nova.
É Basílio, que traz uma rosa ao peito e um embrulho debaixo do braço.
Juliana começa a desconfiar de alguma coisa e passa espionar Luísa e Basílio.
Não consegue ouvir nada e leva um susto com a campainha: é Sebastião, que resolve não se fazer anunciar, já que Luísa está com visita.
Juliana, curiosa, ouve os primos se tratarem por tu. Basílio vai embora e na despedida, escuta Luísa prometer que não faltaria.
Luísa passa o resto da tarde tranquila, come bem ao jantar e pede um pouco de café bem forte. Aumenta cada vez mais a curiosidade de Juliana.
No dia seguinte, domingo, Luísa pede a Juliana que leve um bilhete para D. Felicidade e passa o resto do dia tranquilamente em casa. Mas, à noite, Juliana surpreende-a com um vestido preto, pronta para sair. Às nove horas, chegou uma carruagem com D. Felicidade.
Juliana pelo quarto arrumava, dobrava, toda curiosa. “Onde iriam? Onde iriam?”
A criada aproveita para descansar em uma poltrona na varanda. Seu vulto na janela é confundido, por um grupo de rapazes, com Luísa, o que a diverte muito.
Sebastião aparece mais uma vez à procura de Luísa e não a encontra.
As duas foram ao Passeio Público, onde encontram “por acaso” Basílio. Sentaram-se e conversaram sobre touradas; teatro; os problemas de intestino de D. Felicidade e disse que tais problemas eram muito chiques e recomendou-lhe gelo, o que imediatamente fez que a velha senhora o considerasse muitíssimo simpático.
Basílio aproveitava para criticar tudo em Lisboa.
Conversaram ainda um pouco e saíram então para passear. D. Felicidade sentia-se despeitada e infeliz porque não encontrara o Conselheiro no Passeio.
Luísa de seu lado sentia-se um pouco tonta com o movimento, mas muito feliz. Basílio achava a prima cada dia, mais bonita. Daí a pouco, as duas mulheres tomaram uma carruagem e voltaram para casa.
Luísa foi recebida por Juliana, que prontamente lhe serviu o chá assim que ela se trocou.
No dia seguinte, logo cedo chegaram flores que Sebastião mandara. Ele as cultivava em sua chácara. À tarde, apareceu mais uma vez Basílio.
Juliana fica sabendo que o janota era primo de Luísa e se decepciona um pouco, mas continua a achar que há alguma coisa errada na história. A patroa ordena a Juliana que mande entrar as visitas, caso apareçam.
O primeiro a aparecer é Julião, querendo saber notícias de Jorge. A figura mal vestida e suja do amigo de Jorge deixa Basílio escandalizado. Cria-se um clima constrangedor na sala. Luísa sente vergonha pela presença de Julião, porque sabe o que Basílio está pensando dele; Julião fica nervoso, sente-se humilhado e irritado com o tratamento que Luísa lhe dispensa. Este foi se sentindo isolado da conversa sobre condessas e outras pessoas que não conhecia. Acabou despedindo-se, depois de alegar pressa. Basílio aproveitou a saída de Julião para perguntar quem era e critica Luísa por receber em sua casa uma pessoa de tão má aparência e suja. Diz que isso não acontecia quando ela ainda não era casada.
Pouco depois chegou o Conselheiro Acácio. Dessa feita a conversa foi mais amena apesar de Basílio ter criticado Lisboa pela pasmaceira da cidade.
Basílio pede a Luísa que toque o piano, no que é ajudado pelo Conselheiro. Luísa toca, mas pede a Basílio que cante, ele cede. Canta ao lado de Luísa e sua voz é muito bela. Olha para a prima enquanto lhe diz a letra de uma canção de amor de maneira apelativa.
Luísa fica embaraçada.
Depois que, o Conselheiro despede-se desejando votos de prosperidade para Jorge quando Luísa escrevesse, Basílio comenta que aquele pelo menos é limpo.
Basílio resolve ser mais direto com Luísa.
“(...) com um movimento brusco, passou-lhe o braço sobre os ombros, prendeu-lhe a cabeça, e beijou-a na testa, nos olhos, nos cabelos, vorazmente.
Ela soltou-se a tremer, escarlate.
- Perdoa-me - exclamou ele logo, com um ímpeto apaixonado. - Perdoa-me. Foi sem pensar. Mas é porque te adoro, Luísa!
Tomou-lhe as mãos com domínio, quase com direito.
- Não. Hás de ouvir. Desde o primeiro dia que te tornei a ver estou doido por ti, como dantes, a mesma coisa. Nunca deixei de me morrer por ti. Mas não tinha fortuna, tu bem o sabes, e queria-te ver rica, feliz. Não te podia levar para o Brasil. Era matar-te, meu amor! Tu imaginas lá o que aquilo é! Foi por isso que te escrevi aquela carta, mas o que eu sofri, as lágrimas que chorei!
Luísa escutava-o imóvel, a cabeça baixa, o olhar esquecido; aquela voz quente e forte, de que recebia o bafo amoroso, dominava-a, vencia-a; as mãos de Basílio penetravam com o seu calor febril a substância das suas; e, tomada de uma lassidão, sentia-se como adormecer.”
Luísa soltou-se a tremer, vermelha. Basílio pediu perdão e declarou-se, procurando desculpar-se do passado. Basílio voltou a prender Luísa nos braços. Ela pediu que a deixasse e que partisse. Basílio partiu, mas prometei voltar no dia seguinte.
Luísa encontra Juliana arrumando a roupa no seu quarto e a criada lhe avisa que o Sr. Sebastião estivera, mas não quisera entrar, que voltaria mais tarde. De fato, Sebastião disse que voltaria, mas começa a ficar envergonhado de encontrar Luísa em casa acompanhada sempre com o seu primo Basílio.
Nas primeiras vezes não sabia quem era a visita frequente, e logo lhe perguntaram na rua quem era o rapaz com quem Luísa fora vista no Passei Público. Acalmou-se um pouco ao saber que era o primo; mas não se tranquilizou totalmente.
Sebastião conhecia o passado de Basílio, sabia de suas conquistas amorosas, de sua vida de rapaz rico, de sua fama de debochado, perdido e vagabundo (enriquecera em um lance de pura sorte, com especulação no Paraguai; nem mesmo na miséria, na Bahia, o moço se dispusera a trabalhar). Refletia nessas coisas quando é interrompido por um vizinho, o João Paula, dono da marcenaria, que pergunta se havia doença na casa do senhor engenheiro, pois via entrar todos os dias um sujeito estranho e imaginou que fosse médico.
“- Desses novos da homeopatia!
Sebastião tinha corado.
- Nada - disse. - É o primo de D. Luísa.
- Ah! - fez o Paula. - Pois pensei... Queira desculpar, Sr. Sebastião.”
A coisa ia mal! Pensa Sebastião, toda a vizinhança já começava a falar..
Sebastião tinha um gênio antiquado. Era solitário e acanhado. Já no Latim lhe chamavam o "Peludo"; punham-lhe rabos, roubavam-lhe impudentemente as merendas. Sebastião, que tinha a força de um ginasta, oferecia a resignação de um mártir.
Foi sempre reprovado nos primeiros exames do liceu. Era inteligente, mas uma pergunta, o reluzir dos óculos de um professor, a grande lousa negra imobilizavam-no; ficava muito embezerrado, a face inchada e rubra, a coçar os joelhos, o olhar vazio. A única atividade em que se destacou foi o piano.
Sebastião morava na mesma rua de Jorge. As mães dos dois eram amigas e a amizade se transmitiu para os filhos. Quando a mãe de Jorge morreu, os dois quase foram morar juntos, mas logo apareceu Luísa.
Sebastião foi o responsável por todos os preparativos do casamento, embora tenha lhe custado acostumar-se com a intrusa naquela amizade de longa data.
As duas criadas eram muito antigas na casa; a Tia Vicência, uma antiga cozinheira, e de Tia Joana, governanta da casa desde que era menino, quase uma avó.
Enquanto isso, Luísa recebe carta de Jorge queixando-se do calor, das hospedarias e das saudades. A carta provoca nela uma confusão de sentimentos. Arrepende-se quase às lágrimas pelo seu envolvimento com Basílio, pensa em escrever-lhe pedindo que não apareça mais. Tenta pensar em Jorge, mas logo lhe vem uma preguiça. Culpa Jorge por estar longe. Lembra-se de Leopoldina e sente certa liberdade com a ausência do marido.
Seu pensamento não consegue fixar-se em nenhum lugar e logo volta a Basílio.
“As viagens, os mares atravessados tinham-no tornado mais trigueiro; a melancolia da separação dera-lhe cabelos brancos. Tinha sofrido por ela! - E no fim onde estava o mal? Ele jurara-lhe que aquele amor era casto, passando-se todo na alma. Tinha vindo de Paris, o pobre rapaz, assim lho jurara, a ver, uma semana, quinze dias. E havia de dizer-lhe: Não voltes; vai-te?”
Juliana vem lhe oferecer chá, mas ela recusa e pede que arrume o quarto para se deitar. A criada percebe os suspiros da patroa e vai contar a Joana. A cozinheira discute com ela por pensar más coisas de Luísa. Na cama, Luísa sonha acordada com Basílio.
No outro dia, Basílio encontra a prima apenas de roupão branco; muito fresca, com um bom cheiro de água de alfazema.
“Mas assim é que ela estava linda! Assim é que a queria sempre! - exclamou Basílio muito contente, como se aquele roupão de manhã fosse já uma promessa da sua nudez.”
Conversam brincando, muito íntimos. Basílio diz a Luísa que só viera a Lisboa por sua causa, diz que sonhou com ela e convida-a para um passeio no campo, mas ela tem medo. Ele tenta convencê-la, ela pede que ele volte no dia seguinte, prometendo que pensaria na proposta.
“O quê? Que estavam longe, numa terra distante, que devia ser a Itália, tantas as estátuas que havia nas praças, tantas as fontes sonoras que cantavam nas bacias de mármore; era num jardim antigo, sobre um terraço clássico; flores raras transbordavam de vasos florentinos; pousando sobre as balaustradas esculpidas, pavões abriam as caudas; e ela arrastava devagar sobre as lajes quadradas a cauda longa do seu vestido de veludo azul. De resto, dizia, era um terraço como de São Donato, a vila do Príncipe Demidoff - porque lembrava sempre as suas intimidades ilustres, e não se descuidava de fazer reluzir a glória das suas viagens.”
Mas, no dia seguinte, Basílio não voltou a tocar no assunto.
“Depois falou muito de Paris; contou-lhe a moderna crônica amorosa, anedotas, paixões chiques. Tudo se passava com duquesas, princesas, de um modo dramático e sensibilizador, às vezes jovial, sempre cheio de delícias. E, de todas as mulheres de que falava, dizia recostando-se: era uma mulher distintíssima; tinha naturalmente o seu amante...”
Ao sair, diz a ela que está pensando em deixar Lisboa. Afinal, se nada conseguia com ela, não tinha motivos para ficar.
Luísa fica sozinha e chora.
No outro dia é ela quem toca no assunto do passeio. Basílio promete arranjar tudo para que ninguém a veja: um carro fechado, a chácara de um amigo. Põe-se a seduzi-la, canta para ela, e propõe levar gelo, champanhe...
Sebastião, que passara três dias fora de Lisboa é informado pela Tia Joana que os comentários sobre Luísa e Basílio cresceram.
Sebastião decide procurar Julião. Encontra-o ma rua, a caminho de casa. Entram em um café. Sebastião fala do primo de Luísa, que Julião já conhecera e achara uma verdadeira besta.
Julião acredita que Basílio quer aproveitar-se de Luísa e que ela ou é muito inocente, por não desconfiar disso, ou muito tola, por não ver o escândalo a que está se expondo, recebendo em casa todos os dias um homem, quando o marido está fora.
CAPÍTULO V
Era um dia de muito calor. Um pouco depois do meio-dia, Joana está a dormitar a sesta quando Juliana entre pela cozinha e atira um cesto de roupa suja no chão. Joana tenta acalmá-la em vão.
“- Diz que os colarinhos tinham pouca goma; pôs-se a despropositar! Estou a aturar! Estou farta! Estou até aqui! - bradava, puxando a pele engelhada da garganta. - Pois que me não faça sair de mim! Que me vou, e pespego-lhe na cara por quê! Desde que aqui temos homem e pouca-vergonha, boas noites!... Quem quiser que se meta em alhadas...”
Juliana reclama com fúria que a patroa tem sujado muita roupa depois das visitas que tem recebido durante as tardes. De repente, fez-se branca como a cal; caiu sobre a cadeira de vime com as duas no peito, chegando assustar Joana.
Luísa vai à cozinha saber o que acontece e autoriza Juliana a procurar um médico.
Na rua, a caminho do médico, Juliana é interrogada por uma das vizinhas, a D. Helena, sobre o janota que não saía da cada de Luísa, mas nada diz por que sabe que a vizinhança a chama de tripa velha. O Paula, que viu as duas conversarem, veio falar com a vizinha, que responde nada ter arrancado da empregada.
O Paula afirmou que ela recebia dinheiro da patroa para levar as cartinhas e abrir a porta de noite para o amante. Aproveitou para falar mal de todas as mulheres da sociedade e até das freiras, dão terem fechado os conventos: “Porque era uma desafora lá dentro!”
Pouco depois ele cumprimentou Luísa que vinha passando. Antes de entrar em sua porta, o Paula ainda deteve-se para falar de Pedro, o carpinteiro amante de Joana, que foi visto por ele numa das janelas da casa do engenheiro.
Comentou:
“E agora, que a patroa vai à vida, lá está o rapazola a entender-se com a criada! (...) Aquela casa vai-se tornando um prostíbulo!”
Luísa enfim cede aos apelos de Basílio.
“Consentira na véspera, declarando logo que era só um passeio de meia hora, de carruagem, sem se apearem. Basílio ainda insistiu, falando em sombras de alamedas, uma merendinha, relvas Mas ela recusou, muito teimosa, rindo, dizendo: - Nada de relvas!...
E tinham combinado encontrar-se na Praça da Alegria. Chegou tarde, já depois das duas e meia, com o guarda-solinho muito carregado sobre o rosto, toda assustada.
Basílio esperava, fumando, num cupê, à esquina, debaixo de uma árvore. Abriu rapidamente a portinhola, e Luísa entrou fechando atrapalhadamente a sombrinha; o vestido prendeu-se ao estribo, esgaçou-se no rufo de seda e, achou-se ao lado dele, muito nervosa, ofegante, com o rosto abrasado.”
Basílio tenta seduzi-la: faz-lhe carinhos no rosto e nas mãos, di que decidira ficar em Lisboa para viver sempre ao lado dela, que era a única coisa de importante que ele tinha no mundo, convida-a a fugir com ele.
Luísa cerrou os olhos. O movimento muito lançado do cupê, o calor, a presença dele, o contato da sua mão, do seu joelho, amoleciam-na. Sentia um desejo a alargar-se dentro do peito.
Basílio tenta beijá-la, mas ela está muito nervosa e inquieta e pede para voltar a Lisboa.
Em Lisboa, Basílio vai para o Grêmio encontrar-se com seu amigo, o Visconde Reinaldo, que viajava com ele. Reinaldo está impaciente com a aventura de Basílio. Detesta Lisboa e Portugal, e a prima do amigo demora-se muito a ceder.
“Acaba com essa prima. Viola-a. Se ela te resiste, mata-a!”
Mas, Basílio lhe garante que está muito perto da vitória final.
Em casa, Luísa encontra Sebastião, que a esperava.
“Tinha vindo com efeito havia meia hora. Quando a Joana lhe veio abrir, muito encarnada, com ar estremunhado, e resmungou que a senhora estava para fora, Sebastião ia logo descer, com o alívio delicioso de uma dificuldade adiada. Mas reagiu, retesou a vontade, entrou, pôs-se a esperar... Na véspera tinha decidido falar-lhe, avisá-la que aquelas visitas do primo, tão repetidas, com espalhafato, numa rua maligna, podiam comprometê-la... Era o diabo, dizer-lho!... Mas era um dever! Por ela, pelo marido, pelo respeito da casa!”
No entanto, quando Sebastião prepara-se para falar no assunto que o trouxe até ali, percebe que Luísa não está bem. Esta reclama da enxaqueca. Sebastião acaba desistindo de falar e vai embora.
No dia seguinte, logo cedo Luísa recebe uma carta de Leopoldina, dizendo que iria vê-la à tarde, para jantar com ela.
Quem traz a carta é Justina, a criada de Leopoldina, muito amiga de Juliana. As duas empregadas aproveitam para falar, maliciosamente, da vida das patroas, e das vantagens que, às vezes, os criados conseguem tirar disso: favores de amantes, presentes, dinheiro...Luísa sente-se feliz pelo dia cheio que teria, mas o tempo passa sem que o Basílio apareça.
Resolve escrever-lhe um bilhete, no qual chama o primo por “Querido Basílio: Por que não vens? Estás doente? Se soubesses os tormentos por que me fazes passar...”, mas é interrompida pela campainha. Amassa e guarda o bilhete no bolso do vestido, irritada pela interrupção.
Não era Basílio, como Luísa esperava, mas Sebastião. Ele vem falar-lhe de seus encontros com Basílio; toda a vizinhança comentava...Não era de bem que uma mulher casada recebesse tanto em casa um outro homem, estando o marido fora. Luísa reage nervosa e indignada, pois se os dois eram amigos de infância! Se não se viam há tanto tempo e eram parentes! O que tinha a vizinhança a ver com sua vida?! Demonstra sinceridade nas palavras e agradece a intervenção de Sebastião. Mas o que quer ele que ela faça? Que coloque o primo para fora de casa?
A indignação e revolta de Luísa impressionam e desarmam Sebastião, que lhe pede desculpas e promete que não irá dizer nada a Jorge...Mas aconselha-a a tomar cuidado com os vizinhos mexeriqueiros.
Sebastião sai e Luísa, nervosa, pensa no desaforo e no absurdo que é o amigo de Jorge lhe vigiar a vida. Mas não pode deixar de dar razão a ele. Os vizinhos realmente eram de morte! Fica perdida entre os seus sentimentos por Basílio e os deveres de mulher bem casada, exposta às conversas dos vizinhos, até que chega Leopoldina, eufórica, esfomeada, pedindo bacalhau para o jantar.
As duas amigas divertem-se muito: falam mal das empregadas, cantam fados ao piano, relembram os tempos de colégio, bebem vinho e champanhe. Leopoldina conta de seu amante, poeta e estudante, e de um banqueiro, o Castro, que soubera completamente apaixonado pela amiga! Luísa repreende-a pelo seu comportamento, fala em deveres, moral e religião. Leopoldina diz que é impossível definir o que é ou não imoral, acrescentava que maior imoralidade que os padres não havia.
Depois do café, Leopoldina se vai, acompanhada por Juliana.
Luísa fica sozinha, um pouco tonta por causa do champanhe e do vinho, pensando nas palavras da amiga e em Basílio que não aparecera. Toca a campainha, Joana atende e vem dizer-lhe que era Basílio, pedindo para falar com a prima para se despedir, pois ia partir para Paris. Luísa assusta-se e manda-o entrar.
Basílio diz que a partida era apenas uma desculpa para que ela o recebesse àquela hora. Luísa alivia-se enquanto Basílio a envolve com juras de amor.
Entontecida, Luísa entrega-se a ele, sussurrando: “Jesus! Não! Não!”
“Apertou-a contra si, beijou-a; ela deixava, toda abandonada; os seus lábios prendiam-se aos dele. Basílio deitou um olhar rápido, em redor, pela sala, e foi-a levando abraçado, murmurando: Meu amor! Minha filha! Mesmo tropeçou na pele de tigre, estendida ao pé do divã.”
A campainha vem interrompê-los. Luísa diz que havia de ser Juliana que tinha ido fora. Basílio disfarça, tocando uma ária ao piano que faz Luísa lembrar-se do marido.
Depois vem para junto de Luísa, passando-lhe o braço pela cintura e prometendo encontrar uma casinha para se verem melhor. Luísa lembra que é tarde.
Despedem-se com muitos beijos.
Juliana pergunta a Joana a que horas chegou o primo. Fica sabendo que foi logo que saiu. Foi à sala, depois de passar pelo quarto de Luísa e perguntar se esta queria chá.
Olhou pela sala devagar, acabando por encontrar um grampo para cabelo de Luísa. Voltou ao quarto e guardou o objeto sobre o toucador.
Basílio procura Reinaldo no Grêmio e conta-lhe que finalmente completara a sedução da adorável priminha.
CAPÍTULO VI
Luísa é acordada no outro dia por Juliana. Um criado do hotel traz-lhe um bilhete de Basílio, no qual se diz apaixonado e, morto de saudades. Luísa fica encantada com a surpresa.
Aquela manhã estava perfeita: lembra-se do amante, sente-se muito saudável, aprecia o dia de verão, arruma-se para ficar linda. Lembra-se de Basílio o tempo todo. Jorge não passa de uma recordação esfumaçada em sua memória. Justifica o seu adultério com o de tantas mulheres famosas, com o seu amor, com o inevitável destino.
Juliana estava estranha, como percebera Joana, que pergunta sobre seu estado de saúde. Juliana disse que nunca se sentiu tão bem e que está a malucar por dentro. A criada entra com cuidado no quarto, retira os vestidos para sacudir no corredor e encontra no bolso o bilhete iniciado por Luísa ao seu primo, leu-o e tornou a guardá-lo com cuidado.
Trabalhou cantarolando, paparicando sempre a senhora, enquanto no seu íntimo chamava-a de “grande cabra” e “grande bêbada”.
Luísa deixou-se ficar no quarto a reler o bilhete de Basílio, cheio de juras e promessas de amor e resolver escrever a Basílio. Na metade da carta, é interrompida pela visita da costureira, mas manda-a esperar, enquanto termina de escrever.
“Meu adorado Basílio
Não imaginas com que alegria recebi esta manhã a tua carta...”
Não consegue: aparece D. Felicidade, que invade a casa à procura dela.
Luísa, desesperada, joga a carta no cesto de lixo e leva a visita para a sala. A velha amiga quer sua opinião sobre uma simpatia para arranjar maridos, de que ouvira falar por um namorado de uma sua criada. A simpatia lhe custaria sete moedas, o que a afligia, porque era muito dinheiro. Mas diziam ser infalível!
Ela escuta inquieta acha aquilo tudo uma grande bobagem, e de repente lembra-se da carta no lixo. Pede licença e sai desesperada da sala para o escritório, à procura do papel, mas Juliana já havia esvaziado o cesto de lixo. Luísa fica nervosa. Mas, Juliana finge estar preocupada por ter feito alguma besteira: que papel era? Era muito importante? Desconfiada da criada, lembra-se do bilhete no bolso do vestido do dia anterior e vai ao quarto procurá-lo: está lá, o que a deixa menos preocupada e mais conformada com a carta ter ido para o lixo.
Volta à sala para conversar com D. Felicidade, quando chega outro bilhete de Basílio, do hotel. Anunciava que lhes arranjara um “ninho de amor”, o “Paraíso”, dava o endereço e dizia que a esperava no dia seguinte. D. Felicidade propõe um passeio e Luísa, toda feliz com a boa notícia do primo, aceita imediatamente.
Arruma-se para sair cantarolando, no que é imitada pela esforçada e alegre Juliana...
No dia seguinte, Sebastião conta a Julião sobre a conversa que tivera com Luísa. Julião não está muito interessado, porque se preocupa com um concurso para uma cadeira de professor da Escola de Medicina, que podia ser sua tábua de salvação e para o qual estava estudando muito; mas teme politicagens e pede a Sebastião que interceda por ele junto a um deputado, primo do amigo. Enquanto conversam, Luísa passa ao longe e acena para eles, a caminho do “ninho do amor”.
Sebastião comenta: “- Se aquilo não respira mesmo honestidade! Vai às lojas...Santa rapariga!”
A ideia de um lugar secreto onde se encontrar com o amante excitava Luísa mais que o próprio encontro. Sonhava com um lugar ricamente decorado, cheio de luxos e seduções, como os que se acostumara a imaginar lendo os seus romances.
Apesar de que o endereço que Basílio lhe dera fosse em uma parte muito pobre de Lisboa, conformava-se com a ideia de que o lugar fosse feio por fora, mas atraente por dentro. Ao chegar ao endereço, depara-se com uma rua pobre e malcheirosa. O sobrado, velho e imundo por fora; por dentro, móveis usados e grosseiros, decoração antiga, sem sequer sombra de luxo ou conforto.
O palácio que imaginara mais parecia uma pocilga...Mesmo assim entregou-se a Basílio e passou a ir encontrá-lo todos os dias naquele lugar.
Em casa, Joana estranha as mudanças de Juliana: já não reclama mais do serviço, passa os dias a trabalhar, cantarolando. Quanto mais roupa aparece para lavar, mais a empregada elogia o asseio da patroa. Mas, a verdade é que por dentro ruminava o seu ódio, esperando a hora propícia para explodir. Na rua, os vizinhos falam das saídas diárias da mulher do engenheiro: todos têm certeza de que vai se encontrar com o “peralta”, às escondidas. As fofocas chegam ao ouvido de Tia Joana, que as repassa para Sebastião, que se desespera, sentindo-se impotente para fazer qualquer coisa.
Jorge escrevera-lhe reclamando que as cartas de Luísa eram cada vez mais escassas e apressadas. Resolve procurar a amiga e falar-lhe, mas Luísa recebe-o com indiferença, demonstrando tédio e cansaço, sem dar-lhe atenção, sequer citando Jorge na conversa.
Sebastião não tem coragem de tocar no assunto de suas escapulidas diárias e resolve ir aconselhar-se novamente com Julião.
Encontra o médico afundado nos estudos para os exames da Escola de Medicina, escrevendo sua tese; Sebastião não consegue lhe falar de Luísa porque chega um estudante que começa uma discussão com Julião sobre medicina, religião, filosofia. Desiste de tratar do assunto e vai-se embora. Lembra-se então de pedir a ajuda de D. Felicidade. Vai até a casa dela e descobre que a velha senhora estava hospitalizada por causa de uma torção no pé. Isso lhe dá uma ideia para, pelo menos, camuflar as saídas de Luísa.
Sebastião volta à casa de Luísa e lhe conta da enfermidade da amiga. Luísa sai imediatamente para visitar D. Felicidade, enquanto Sebastião trata de falar ao Paula que a senhora D. Luísa saía todos os dias para visitar a senhora D. Felicidade, que se machucara e estava hospitalizada.
A fofoca espalha-se pelo bairro e todos se admiram das virtudes de Luísa.
Já não é mais a esposa infiel, mas a caridosa senhora que visita os enfermos. Sebastião sente-se aliviado por salvar as aparências na vizinhança, mas nem um pouco convencido de que fizera a coisa certa.
Na verdade, Luísa vai visitar D. Felicidade apenas por algumas horas, disparando em seguida em direção ao Paraíso, como chamavam o quarto onde se encontravam.
Os encontros a princípio são cheios de amor e volúpia.
Basílio ensina a Luísa maneiras chiques de se vestir e de se comportar; além das novidades amorosas que a deixam mais apaixonada e seduzida. Contudo com o passar do tempo, Luísa nota que o amante parece entediado e que não é mais afetuoso e galante como antes. Comporta-se às vezes com muita secura, com muita superioridade, sem importar-se com os desejos dela e até falando-lhe mal do marido. Mas como algumas vezes também, comporta-se com doçura e paixão, Luísa perdoa-lhe os maus momentos e convence-se de que os sentimentos dele para com ela são sinceros.
Ao voltar para casa, por duas vezes já encontrara Juliana pelo caminho; a criada dizia ter ido ao médico cuidar de suas dores.
Na verdade, Juliana deixava a feliz Joana em casa, a sós com o amante, enquanto ia aconselhar-se com a sua inculcadeira, Dona Vitória Soares que era conhecida de quase todos os empregados e criados de Lisboa. Tomava conta de todo mundo: arrumava empregos, emprestava dinheiro para os que precisavam, aplicava dos que tinham mais sorte, aconselhava os que tinham planos ou problemas. Em sua casa muito pobre havia uma espécie de escritório, era ali que Juliana ia encontrar-se com ela para se aconselhar. Em casa, de acordo com as ordens de Tia Vitória, comportava-se como a mais fiel das criadas. Esperava o “momento correto”.
CAPÍTULO VII
Numa manhã, Luísa foi ao encontro de Basílio e encontrou-se com Ernestinho no caminho. O primo de Jorge, surpreso por encontrá-la, disse:
“ – Ah! Esquecia-me de dizer-lhe, sabe que lhe perdoei?
Luísa abriu muito os olhos.
- À condessa, à heroína! – exclamou Ernestinho.
- Ah!
- Sim, o marido perdoa-lhe, obtém uma embaixada, e vão viver no estrangeiro. É mais natural...”
A fala de Ernestinho gera cera ambiguidade pelo uso em terceira pessoa, fazendo Luísa acreditar que ela mesma foi perdoada.
Luísa despede-se e rumo ao Paraíso. Conta ao amante que tem medo de que Ernestinho comente do encontro a Jorge e sugere que talvez devessem se encontrar menos. Afinal, ela se arriscava muito!
Basílio trata-a com desprendimento, não lhe dá atenção e diz que por ele está tudo como ela quiser.
Luísa impacienta-se com Basílio. Já não é mais o mesmo, vê-a como uma burguesinha, um simples capricho.
A indiferença do amante obriga-a a comparar sua situação atual com seu relacionamento com Jorge.
“Jorge que a amava com tanto respeito.”
Um dia Luísa disse-lhe que era mais digno terminarem o relacionamento.
Basílio reclama da cena e pergunta se quer que a ame como no teatro. Diz que realmente a ama, mas dispensava todo “aquele romantismo”, já que agora são íntimos.
Naquela tarde, ao voltar para casa, enquanto espera pelo jantar pensa que talvez houvesse errado envolvendo-se com seu primo. Sentia saudades de Jorge, que sempre a tratava tão bem, sempre lhe considerava tanto!
Sentia-se como Leopoldina: uma vaidosa, que está sempre à busca de novas experiências, sacrificando sua felicidade conjugal. No entanto, Basílio jurava-lhe que a amava tanto! Dizia que estava em Lisboa apenas por causa dela e isso parecia verdade.
De qualquer maneira, decide que no dia seguinte não iria ao Paraíso, ficaria em casa.
À tarde recebe um bilhete de Basílio em que ele dizia que desesperara-se com a ausência dela no encontro diário e termina pedindo que vá no dia seguinte.
Luísa esperava encontrar o amante choroso, humilde e arrependido de suas grosserias, mas de testa franzida e muito áspero, repreende-a por ter faltado no encontro do dia anterior.
Ela ameaça partir, porém Basílio diz que ela o deixar, ele morre.
Acabam perdoando-se e amando-se.
No outro dia, Basílio esperava-a com um cesto cheio de comido e champanhe. Luísa fica maravilhada com a surpresa e os dois passam á tarde entre juras de amor e intimidades.
Naquela tarde Luísa entregou-se a uma experiência nova (variações sexuais), não sem antes negar-se ao pedido do amante.
“Ele torcia o bigode, muito satisfeito. Ensinara-lhe uma sensação nova; tinha-a na mão!”
À noite, Luísa, muito alegre, vai com Juliana visitar Leopoldina, mas esta viajara para o Porto. Resolve então andar pelas ruas, mas assusta-se com homens que insinuam a ela.
Juliana os dispersa e voltam para casa.
Na manhã seguinte acordou muito feliz e excitada. Saiu logo cedo ao encontro do primo. Mas encontrou-se com o Conselheiro, que insiste passear com ela e acompanhá-la a vários lugares: percorrem todo o centro de Lisboa; Luísa entra em uma igreja com a desculpa de rezar; demora-se; entra em lojas, até que Luísa inventa uma desculpa, que precisava ir ao dentista! Despede-se do Conselheiro e toma uma carruagem para o Paraíso.
Lá chegando, o amante não está mais. Vai então procurá-lo no Hotel Central, mas também não o encontra. Resolve então voltar mais cedo para casa do que de costume, muito irritada com tudo o que lhe acontecera durante o dia. Ao chegar á casa, encontra tudo desarrumado porque Juliana estivera até aquele momento desocupada. Discute com a criada, esta perde a paciência e atira a vassoura. Luísa cheia de cólera demite a empregada, mas Juliana ameaça-a dizendo que está com todos os papéis que foram para o lixo (as cartas de Luísa e do amante).
Luísa desmaia.
CAPÍTULO VIII
Luísa acorda com a empregada Joana próxima de seu rosto a perguntar se estava melhor. Um forte cheiro de vinagre no ar. Juliana tinha ido se deitar, reclamando que estava com dores.
Ela procura saídas para o seu drama: e se Juliana morresse? Inútil. Sabe que a única solução que lhe resta é fugir com Basílio. A princípio sente-se infeliz; pensa em escrever uma carta a Sebastião explicando tudo. Mas logo descartou a ideia. Na verdade era melhor fugir, afinal partiria com um homem que a amava e a quem ela também amava e muito. Deixaria a sua vida monótona de Lisboa para viver com Basílio as delícias de Paris.
Prepara sua mala e sente falta de uma carta e dois bilhetes do amante.
No quarto, antes de se ditar, olha para a cama e lembra-se de quando estivera doente, com pneumonia, e Jorge não arredara pé dela, ficara quase sem dormir o tempo todo, incentivando-a a melhor, sofrendo por ela, descansando às vezes em um colchão ao lado da cama. Chegou até a chorar e beijar o médico quando ele disse que enfim Luísa estava curada. Essas lembranças fazem-na chorar.
Antes de se deitar, Juliana desceu mais uma vez do sótão para avisar que ainda se sentia mal. Luísa estremeceu apenas de ouvir a sua voz no corredor, conversando com Joana. Por fim, vai deitar-se, fatigada, e dorme logo. Juliana, por sua vez, não consegue dormir. Pensa em como conseguira roubar do lixo do escritório a carta que Luísa escrevia a Basílio e em como ficara imensamente feliz com aquilo, mas sem saber o que fazer. Foi a Tia Vitória que a convenceu a esperar até conseguir uma carta do amante para ter mais armas na mão. Durante meses trabalhou com afinco para descobrir as cartas, fez até cópias de chave. Mas depois do que aconteceu naquele dia, era melhor não facilitar.
Tia Vitória ouve a sua história e aconselha-a a deixar com ela as cartas: mandaria alguém ao hotel com um bilhete e uma cópia das provas do adultério, exigindo de Basílio um conto de réis por elas! Enquanto isso Juliana não deve voltar à casa de Luísa; passaria aquela noite com ela. A criada sai da casa de Tia Vitória exultante e passa o dia na rua, a desfrutar de sua liberdade, sonhando com a fortuna que conseguiria.
Luísa acorda e fica sabendo por Joana que a casa está por arrumar e que Juliana saíra cedo e ainda não voltara, o que na verdade mais alivia que preocupa Luísa.
Ás onze e meia, antes de sair para encontrar-se com Basílio, Luísa coloca a foto de Jorge sobre o são de marroquim que arrumara com suas coisas.
Não o encontra no hotel e parte para o Paraíso. Basílio já a esperava lá, irritado com sua ausência no dia anterior e com sua demora. Luísa conta-lhe todo o seu drama e se diz disposta a fugir com ele. Ele tenta acalmá-la, argumentando que aquilo que era caso de fugir, que seria apenas caso de molhar a mão da criada com algum dinheiro, que a fuga apenas enlamearia de vez o nome dela, que ele não tinha como garantir a ele nenhum futuro...
“É ver quanto quer, e pagar-se-lhe!”
Basílio diz possuir uns duzentos mil-réis.
“ – Enfim, oferecer-lhe trezentos mil-réis, se quiseres. Mas pelo amor de Deus, não faças outra; não estou para pagar as suas distrações a trezentos mil-réis cada uma!”
Luísa sente-se abandonada por Basílio e indignada, recusa o dinheiro.
Ela suplica mais uma vez que ele fuja com ela! Basílio se recusa e ela sai em disparada do quarto e entra na carruagem que a espera, ordenando ao cocheiro que siga para sua casa.
Basílio volta para o hotel. Estava irritado com aquela história, parecia-lhe que aquilo de criados e intrigas de adultérios era algo muito trivial, muito burguês! Tivera bons momentos com a prima, mas aquilo já estava se tornando maçante. Resolve aconselhar-se com o amigo Reinaldo, que chegava de uma viagem desastrosa à casa de um parente, em Benfica.
Reinaldo diz que Basílio tem escrúpulos demais, que perdia o seu tempo e o dele em Lisboa, que inventasse uma desculpa qualquer, um telegrama urgente de Paris, por exemplo, para ir-se embora logo de Portugal. Deixasse a prima resolver-se sozinha.
Na manhã seguinte, Basílio vai despedir-se de Luísa. Mostra-lhe o falso telegrama de Paris que exigia seu retorno. Luísa recebe o primo e o telegrama com ironia. Recusa, novamente, o dinheiro que ele lhe oferece para resolver o problema com a criada.
Basílio parte e Luísa, desconsolada, fica a pensar no marido e a pedir perdão.
Joana interrompe seus pensamentos para dizer que Juliana não aparecera e para pedir permissão para ir procurá-la. Mas antes que Joana voltasse, a própria Juliana aparece. Luísa a recebe com medo. Juliana estava enlouquecida porque soubera da partida de Basílio. Descarrega em Luísa tudo o que passara aqueles meses, enquanto ela se divertia com o amante. Assume-se como ladra, mas diz estar cansada de sua vida miserável e coloca as suas condições: queria seiscentos mil-réis pelas cartas, caso contrário faria um escândalo. Luísa desespera-se: onde arranjaria tanto dinheiro?
“ – Pois que lhe parece? – exclamava.
- Não que eu coma os restos e a senhora os bons-bocados! Depois de trabalhar todo o dia, se quero uma gota de vinho, quem mo dá? Tenho de o comprar! A senhora já foi ao meu quarto? É uma enxovia! A percevejada é tanta que tenho de dormir quase vestida! E a senhora, se sente uma mordedura, tem a negra de desaparafusar a cama, e de a catar frincha por frincha. Uma criada! A criada é o animal. Trabalha se pode, se não rua, para o hospital. Mas chegou-me a minha vez – e dava palmadas no peito, fulgurante de vingança.
- Quem manda agora, sou eu!”
Luísa teve uma noite péssima. Sonhava soluções para o problema. Acordava sobressaltada. Num desses momentos, pensou em pedir o dinheiro a Sebastião, mas como poderia contar que era para resgatar as cartas que escrevera a um amante.
Luísa recebe Sebastião no dia seguinte. Conversam sobre Jorge; Sebastião diz que ele estava para voltar e que lhe recebera duas cartas. Ao mostrar uma das cartas para Luísa, engana-se e apresenta-lhe uma carta em que Jorge conta de várias mulheres que, durante a viagem, o cortejavam. Luísa sente-se enciumada, apesar de dizer que achava aquilo tudo muito natural.
Sebastião insiste em dizer que aquilo não eram coisas que se tomassem a sério. Luísa comunica que o primo partira para Paris e que não voltaria. Sebastião despede-se sem que Luísa tivesse coragem de perdi-lhe o dinheiro.
Luísa recebe uma carta de Juliana, que pede para voltar. Luísa manda que volte.
CAPÍTULO IX
“Juliana voltara para casa de Luísa por conselhos da Tia Vitória.”
Como Basílio fugira só lhe restavam duas alternativas: revelar o escândalo e correr o risco de Jorge perdoar Luísa ou de escorraçá-la de casa; ou voltar para a casa, esperar que Luísa lhe fizesse alguns favores e lhe pagasse o dinheiro. A princípio, Luísa evitava chamá-la, ou mesmo encontrá-la. Mantinha-se trancada no quarto. Juliana percebe e reclama com a patroa, que passa a chamar por ela.
Até que uma tarde Juliana toca no assunto do dinheiro. Luísa balbucia, alegando que ainda não o tem. A criada vira-lhe as costas, ameaçando contar tudo a Jorge quando chegasse. Desesperada, Luísa começa a fantasiar a vingança de Jorge e procurar saídas. A única que encontra é escrever a Basílio pedindo o dinheiro, mesmo com todo seu orgulho. Mas a resposta de Basílio nunca chega e Luísa se convence de que está definitivamente sozinha.
Pressionada por Juliana, Luísa joga na loteria, mas as cartas saem brancas.
Até que um dia Juliana vem lhe mostrar um vestido de seda preto que tinha um rasgo. Luísa oferece o vestido á criada, que fica satisfeitíssima.
Luísa entrevê então uma saída: o jeito era presentear a criada, para que não contasse nada até que conseguisse o dinheiro.
Dois dias depois, Jorge telegrafa, comunicando sua volta. Pede a Juliana que lhe dê algum tempo. A criada concorda e diz querer apenas um pouco de pão para a velhice e aproveita para pedir permissão para sair, àquela tarde, de folga. Mesmo sabendo que Joana não estaria em casa, Luísa diz que está tudo bem.
Luísa aproveita para revistar o quarto da empregada, mas não encontra as cartas. Assusta-se com um gato no telhado. Logo depois escuta a campainha. É D. Felicidade, já recuperada de sua enfermidade no pé, para uma visita. A senhora convidara também o Julião e o Conselheiro.
Luísa mesmo vai abrir-lhes a porta e os amigos estranham o fato de que Luísa tivesse dispensado as duas criadas no mesmo dia.
Na sala, conversam sobre a recuperação de D. Felicidade; sobre os preparatórios de Julião para o exame, sobre o novo livro do Conselheiro e sua indicação para receber uma condecoração do governo, sobre a partida de Basílio e, para o desespero dos nervos de Luísa, sobre adultério, pois estavam vendo uma ilustração de um livro em que o marido se preparava para matar a mulher infiel.
Já é tarde da noite. Joana já chegara, mas até o momento, nada de Juliana. Luísa, aflita decide que Joana, ajudada por ela, deve servir o chá. Falam então de criados: Julião insinua que a empregada do Conselheiro era um tanto bonita, o que deixa D. Felicidade aborrecida e adverte Luísa de que Juliana sofre de um aneurisma, podendo morrer a qualquer momento. Luísa defende a serviçal.
Juliana só chegou depois da meia-noite. Foi ao teatro.
Luísa tem outro pesadelo: era a personagem do drama de Ernestinho. Surgem em seu sonho Sebastião, o Conselheiro, Basílio e Jorge, que lhe crava um punhal no seio esquerdo. A platéia berra “O autor! Fora o autor!”. Ernestinho sobe ao palco saltando para não sujar de sangue os sapatinhos de verniz.
Luísa é acordada pelo barulho de uma mala que se deixa cair. É Jorge que chega de Alentejo.
“E ficaram enlaçados, num longo abraço, os beiços colados, sem uma palavra. O relógio do quarto dava sete horas.”
CAPÍTULO X
Jorge sente prazer em estar de novo em casa. Estava muito amoroso e sem barba, mais bonito. Luísa sente-se completamente apaixonada por ele e fica namorando-o a manhã toda.
Jorge conta-lhe sobre seu trabalho e as amizades que fizera. Depois, pergunta a Luísa se viu o primo. Luísa assusta-se e deixa escorregar o prato. Ela afirma que ele veio umas poucas vezes, demorando-se pouco.
“Daí a dias, uma manhã que Jorge saíra para o ministério, Juliana entrou no quarto de Luísa, e fechando a porta devagarinho, com uma voz muito amável:
- Eu desejava falar à senhora numa coisa.”
Reclama do quarto que tanto mal lhe faz à saúde. Propõe mudar-se para o quarto dos baús, onde Jorge guardava velhas coisas de família.
Luísa convence o marido de que era pertinente a reivindicação da criada e Juliana agradece com amabilidades.
Depois de alguns dias Juliana pede que se coloque uma esteira no quarto, porque o chão estava podre. Sem pedir autorização ao marido, Luísa compra a esteira e manda colocá-la.
Jorge estranha a súbita mudança de atitude da esposa em relação à criada. Luísa mente, dizendo que durante sua ausência ficara mais íntima dela e que ela a tratara muito bem por ocasião de um mal-estar corriqueiro.
Ele recompensa a criada com uma gorjeta. Mais uma semana e Juliana exige uma arca para suas roupas novas. Luísa faz entrar o móvel escondido de Jorge. A partir daí, a criada começa a reclamar roupas brancas e os vestidos de Luísa para encher a arca.
A patroa vai desfazendo-se de suas roupas para agradar a criada. Vieram colchões novos, tapetes, vasos, etc. Juliana prospera o que desperta a atenção não apenas de Jorge e D. Felicidade, mas também de Joana, que reclama com Luísa. A patroa, com medo de que a outra criada soubesse de alguma coisa, começa a presenteá-la também. Dá-lhe dinheiro para comprar roupas e permite que saia todas as noites para namorar. A fama de que na casa do engenheiro os empregados viviam na boa vida espalha-se por Lisboa. Começam a chegar para Jorge várias cartas de empregados e empregadas oferecendo-se para trabalhar para ele.
Jorge estranha e acha engraçado, mas está muito ocupado com seu relatório de viagens para se preocupar com coisas tão pequenas.
A casa toda parecia harmônica, bem cuidada. Juliana ensinava pratos a Joana e dedicava-se com esmero ao serviço. Alimentava-se bem, dormia bem. Regalava-se. Além disso, Luísa mostra-se, à noite, cada vez mais apaixonada pelo marido.
Satisfeita, mas sem muito mais o que pedir, Juliana concluiu que era chegada a hora de gozar, tirando partido da boa situação que desfrutava. Passa então a exigir a mesma comida dos patrões, aumentando a porção diária da cozinha; começa a se levantar sempre tarde e sair e voltar tarde para o jantar, o que obriga Luísa a levantar-se cedo para fazer o serviço da empregada.
Luísa convence Joana a fazer o serviço da outra, dando-lhe meia moeda para um vestido, mas Joana começa reclamar e tomar ódio de Juliana.
Jorge não entende o comportamento de Luísa e um dia, irritado com o desleixo de Juliana, repreende-a duramente. A criada se cala, mas diz a Luísa que ou arranje outra empregada ou ajude-a mais nos serviços de casa. Luísa, um dia em que Juliana se demorava na rua e Jorge reclamava das ausências da empregada, começa chorar, numa crise de nervos.
Jorge, transtornado, fica sem saber o que fazer e sem entender o que acontecia.
Jorge passa a queixar-se de que suas camisas estão mal passadas. Chega mesmo a atirar uma camisa amarrotada sobre Juliana, que espera o patrão sair para reclamar com Luísa.
Esta passa a ajudar a empregada. Juliana não cumpre o que prometera a Luísa, já que a esta caberia passar uma trouxa de roupas e a outra engomaria.
Luísa perde a paciência quando a outra chega vestida para sair, Luísa atira o ferro ao chão e sai de casa. Juliana vê então que exagerou.
Luísa, desesperada, procura Leopoldina. Vai até sua casa e desabafa seus problemas com a amiga.
Leopoldina não tem como ajudá-la, não tem dinheiro. Mas diz-lhe que o dinheiro se conseguiria, caso Luísa se entregasse ao banqueiro Castro, homem apaixonado por ela e muito rico.
Luísa indigna-se com a proposta da amiga. Saí e entra em uma igreja para rezar e se consola com fantasias de ir para o convento, mas ao voltar para casa está muito abatida.
Juliana abre a porta e desculpa-se. Sebastião, que veio para o jantar, percebe a palidez de Luísa, que se justifica, dizendo que é debilidade.
CAPÍTULO XI
O Conselheiro foi nomeado ao grau de “cavaleiro da ordem de S. Tiago” e convida Jorge, Sebastião, Julião, Sr. Alves Coutinho, colega de ministério do Conselheiro, e Savedra, o redator do jornal “Século”, para um jantar em sua casa em comemoração a condecoração.
O Conselheiro, antes do jantar, brinda-os com a leitura de um trecho dos originais de seu novo livro, “Descrições das Principais Cidades do Reino e seus Estabelecimentos”.
Consultado, Julião elogia, mas não consegue tirar os olhos de uma pilha de livros com um xale-manta pardo em cima. Pede para lavar as mãos. É levado ao quarto do Conselheiro, onde descobre um volume de poesias obscenas de Bocage, escondida na gaveta da mesa da cabeceira! No leito do Conselheiro Acácio, “duas fronhazinhas chegadas de modo conjugal e terno” revelam uma amante de que todos suspeitavam, mas de que ninguém tinha certeza. À mesa, à medida que vão chegando os pratos, discute-se de tudo: religião, política e mulheres.
Julião diz admirar que tendo o Conselheiro uma casa tão confortável, não se tenha casado. O Conselheiro procura desculpas. Por fim, Julião opina sobre o casamento:
“- O casamento é uma fórmula administrativa, que há de um dia acabar...De resto, segundo ele, a fêmea era um ente subalterno; o homem deveria aproximar dela em certas épocas do ano (como fazem os animais, que compreendem estas coisas melhor que nós), fecundá-la, e afastar-se com tédio”.
Os outros rejeitam a opinião machista de Julião. Falam então da família, Jorge e Luísa são elogiados e Savedra diz que vira muito a Sra. Luísa no verão, passando todos os dias perto de sua casa, distante do centro da cidade e da casa de Jorge, o que deixa este um tanto embaraçado.
Durante o café com licores, todos puderam ver Filomena, a bela criada do Conselheiro. Uma mulher de meia-idade, bem conservada, sua amante secreta.
Julião, enquanto os amigos conversavam, escapuliu para a biblioteca e, ao descobrir um manto que escondia uma pilha de livros e lhe despertara curiosidade, viu que eram vários exemplares encalhados das obras do Conselheiro!
Já em casa, Jorge interroga Luísa sobre suas idas para os lados da casa do Savedra, em Arroios. Luísa disfarça e diz que ia visitar uma amiga de infância que passava férias em Portugal.
Luísa, por aqueles dias, não se sentia nada bem: tinha febres, emagrecia o que preocupava Jorge.
Joana chama Luísa de santa numa conversa com Juliana. Esta afirma que a patroa trabalha porque é seu gênio, não consegue ficar parada. De fato, Juliana já não fazia o mínimo esforço para colocar a casa em ordem, Luísa que se virasse!...Enquanto isso, toda a vizinhança já sabia que a mulher do engenheiro ia mal e dava palpites sobre a doença.
Um dia, Luísa desmaiou. Jorge chama Julião, que diagnostica anemia e receita distrações e ferro.
Uma manhã, Jorge chega á casa inesperadamente e encontra Luísa de robe com um lenço amarrado na cabeça varrendo e a recrimina severamente. Luísa finge que faz aquilo apenas para se distrair, fazer algum exercício...
À noite, irritado, Jorge comenta o fato com Sebastião. Luísa pede ao amigo que cante alguma coisa, mas todas as músicas que pede lembram morte, o que deixa Jorge ainda mais enfezado.
No domingo, os amigos reúnem-se em casa de Jorge. O Conselheiro não pôde vir, mas mandou lembranças a todos por um bilhete, especialmente para D. Felicidade, que fica exultante e confidencia a Luísa que aquilo era resultado de uma simpatia que pagara a uma mulher para que Conselheiro interessa-se por ela.
Julião está feliz com o seu desempenho nos testes para a cadeira da Escola de Medicina.
“Mas de repente a voz aflita de Joana bradou da escada da cozinha:
- Minha senhora! Minha senhora, acuda!”
Juliana desmaiara na cozinha. Não era nada de muito grave, garante Julião, mas a empregada tinha problemas sérios de saúde: “ – Esta mulher um dia morre-lhes em casa”.
Jorge decide então despedir a criada, o que deixa Luísa desesperada. Luísa defende a empregada, lembrando o que fizera pela tia Virgínia.
No outro dia, no jornal, Luísa lê a notícia de que o banqueiro Castro partiria muito em breve, definitivamente, para Paris. Decide-se então a ir procurar Leopoldina em sua casa e pedir a ela que mandasse o banqueiro ir encontrá-la.
Leopoldina escreve ao banqueiro e encoraja a amiga. O Castro vai até a casa de Leopoldina, sendo apresentado á Luísa. Leopoldina acaba dizendo que a amiga precisa de um conto de réis. Luísa retruca que são seiscentos mil-réis. Leopoldina deixa a sala, alegando que a costureira a espera. Castro aproveita para dizer de seu interesse por Luísa e promete o dinheiro para já, mas agarra Luísa pela cinta e atira-lhe um beijo voraz. Luísa escapa, mas Castro segura-a pelo vestido, prometendo o que ela quisesse.
“Diante daquela luxúria bestial, Luísa indignada, agarrou instintivamente de sobre a jardineira o chicote e deu-lhe uma forte chicotada na mão.
A dor, a raiva, o desejo enfureceram-no.
- Seu diabo! – rosnou, rangendo os dentes.”
Luísa ergue o braço, resolvida por uma cólera frenética, e atira “chicotadas rapidamente pelos braços, pelos ombros...”O Castro defende-se vagamente com os braços.
Leopoldina corre ao quarto. Castro despede-se de Leopoldina e chama Luísa de “grande bêbada”.
CAPÍTULO XII
Durante a semana, em um dia de feriado, Jorge chegou mais cedo em casa e encontrou Juliana deitada na poltrona, lendo jornal. A criada desculpou-se, alegando uma palpitação.
Luísa estava “no quarto dos engomados, despenteada, em roupão de manhã, passando roupa, muito aplicada e muito desconsolada”.
Interroga a esposa sobre o que acontecia. Ela diz que a criada está doente e chora.
Jorge promete não mais falar na empregada. Foi o que fez por alguns dias, cumprindo a promessa.
Luísa percebia os olhares rancorosos de Jorge para com Juliana e também os gracejos do marido, sua ironia quando Juliana esquecia alguma coisa.
Um dia Jorge irritou-se mais do que o normal por não encontrar água e toalha no lavatório.
Luísa irritou-se e sugeriu que se era para continuar daquele modo, seria melhor mandar a emprega embora. Jorge não respondeu.
Juliana, com medo do patrão, a princípio tenta retomar algumas de suas funções. Mas como está cada vez mais fraca, o serviço é cada vez mais malfeito e ela fica mais preguiçosa e impaciente com o patrão.
Ao outro dia, Jorge levantou-se cedo e não encontrou a mesa posta. Juliana havia saído. Luísa alegou ter pedido à empregada para ir ao sapateiro. Em seguida, vai à cozinha e pergunta a Joana por que esta não colocou a mesa, já que a outra saíra.
Quando estão almoçando, chega Juliana. Antecipando-se a Jorge, Luísa pergunta que desafora era aquele de sair e deixar tudo por arrumar. Jorge fica furioso e esmurra a mesa quando Juliana, petrificada, não ouve uma ordem de Luísa para encher de água o bule.
Luísa tenta contornar a situação, conversando com Juliana. Mas ela não só não lhe dá atenção como a humilha, ameaça-a e chama-a de puta, na frente de Joana. A cozinheira, ao ver a patroa ser ofendida, atira-se sobre a criada e a esbofeteia. Juliana prepara-se para ir embora. Luísa, quase em forças, aos prantos, pede a ela que fique. Ela ordena que a patroa então despeça Joana. Luísa se arrasta até a cozinha e implora de joelhos à cozinheira que deixe a casa, que se despeça e não diga nada a Jorge.
Juliana vai ao quarto de Luísa, que se deita para descansar, e diz-lhe em tom autoritário que, a partir daquele momento, ela se comporte dentro de casa. Era demais!
Não suportando mais, Luísa veste-se apressadamente e sai, sem pentear-se. Vai até a casa de Sebastião e pede ajuda para recuperar as cartas.
Sebastião fica pálido, mas Luísa começa a chorar convulsivamente e conta-lhe tudo o que estava passando nos últimos tempos, o que deixa o amigo muito comovido e indignado.
Sebastião planeja uma maneira de solucionar o problema. Precisava de que Juliana ficasse sozinha em casa àquela noite. Articula uma sessão de teatro para Luísa, Jorge e D. Felicidade. Luísa escreve a Jorge que irá encontrá-lo na cidade para apanhá-lo e a D. Felicidade que vá buscá-la em sua casa.
O próprio Sebastião incumbiu-se de enviar os bilhetes.
“Luísa olhava-o quase com ternura: parecia-lhe ver, na sua face honesta, uma alta beleza moral. E de pé diante dele, com uma melancolia na voz:
- E vai fazer isso por mim, Sebastião, por mim, que fui tão má mulher...
Sebastião corou, respondeu encolhendo os ombros:
- Não há más mulheres, minha rica senhora, há maus homens, é o que há!”
Sebastião, em seguida, providencia um camarote e a carruagem.
Luísa volta para casa. À entrada, encontra Joana, que está indo embora. Diz-lhe que volte dali a dois dias. Esconde-se de Juliana e se arruma.
Logo chega D. Felicidade e as duas partem para apanhar Jorge, que fica feliz com a surpresa.
CAPÍTULO XIII
Quando chegam, o pano já estava levantado. Representava-se “Fausto” (drama escrito por Goethe, na qual retrata um homem que vende a alma ao diabo).
No primeiro intervalo, comentam que estava tudo muito luxuoso e um colega de Jorge veio visitá-los para contar a história de uma mulher que abandonara um conhecido dos dois. Durante o segundo ato, D. Felicidade estremece ao avistar o Conselheiro, que a cumprimenta, prometendo uma visita próxima.
No terceiro ato, quando um tenor canta a ária da sedução de Margarida por Fausto, Luísa lembra-se da noite em que Basílio a interpretara e fica apreensiva. As recordações da casa, de Juliana e de Sebastião vieram escurecer-lhe a alma.
Sebastião, enquanto isso, às nove horas, dirige-se à casa de um amigo, comissário de polícia, Vicente Azurara. Sebastião pede-lhe que arranje um policial para meter medo em alguém. Vicente sugere o Mendes, um homenzarrão que foi da Guarda. Daí a meia hora, Sebastião e o Mendes encaminham-se para a casa do engenheiro.
Sebastião bate à casa de Jorge, Juliana vem atender e se assusta como policial. Sebastião faz a criada acender a luz da sala e depois fala ao Mendes que aquela era a pessoa. Juliana recua. Leva Juliana para a cozinha e exige as cartas de Luísa e Basílio de volta, ameaçando mandá-la para a cadeia. Juliana teve um movimento de ir à janela e gritar, mas lembra-se do policial presente. Então, tira uma carteirinha do peito e grita três vezes não.
Sebastião abre a porta e chama o Mendes. Juliana atira-lhe a carteirinha, branda os punhos e manda que os raios o partam. Em seguida, vai até a sala, paga e despacha o policial.
Volta para dentro e encontra Juliana ameaçando contar tudo a Jorge e xingando Luísa. Sebastião não se abala. Calmo, ameaça-a com a mais absoluta miséria. A empregada cospe-lhe na cara, tem um ataque.
“Mas de repente a boca abriu-se-lhe desmedidamente, arqueou-se para trás, levou com ânsia ás mãos ambas ao coração, e caiu para o lado, com um som mole, como um fardo de roupa.”
Sebastião sai da casa correndo e vai buscar o Julião, médico da família, que chega ainda de chinelos e confirma a morte de Juliana.
Carregam-na para o quarto e Julião vai comer alguma coisa na cozinha, enquanto conta para o amigo que não conseguira a vaga no concurso, mas que lhe deram como consolo, uma vaga no Posto-Médico. Estava farto com a Medicina.
A carruagem chega, Sebastião vai esperá-los e conta o acontecido. Julião diz que o aneurisma de Juliana rebentou.
Luísa não quer dormir em casa apesar da insistência de Jorge, e vão para a casa de Sebastião.
D. Felicidade persiste que é necessário velar a morta, pelo menos colocar duas velas e mandar chamar um padre.
Sebastião pensa em mandar a preta tia Vicência velar a morta, mas acaba se esquecendo.
CAPÍTULO XIV
Luísa teve febre à noite. Jorge mesmo não dormira, muito nervoso. Pela manhã, Luísa não pudera levantar-se. Julião veio tranquilizá-los. Era uma febre nervosa e ela apenas precisa de descanso.
Em casa de Jorge, preparam o despacho do corpo de Juliana. O padre, a amortalhadeira e os homens da funerária acotovelam-se na casa.
Ás quatro horas do dia seguinte, Juliana é enterrada.
“Foi tudo o que a terra deu na sua morte àquela que ia rolando a essa hora, ao trote de duas velhas águas, para a vala dos pobres, e que fora na vida Juliana Couceiro Tavira!”
Joana volta para tomar conta da casa, pois soubera da morte de Juliana.
Jorge e Luísa decidem ficar mais dois dias na casa de Sebastião, o que deixa o amigo muito feliz.
Jorge contrata uma nova criada, uma menina muito nova e doce, chamada Mariana e manda os baús de Juliana para tia Vitória.
Luísa aproveita a saída do marido para queimar as cartas. Ela estava finalmente aliviada, mas à noite a febre volta.
D. Felicidade vem visitar a amiga para contar que a história da simpatia para atrair maridos era invenção, e que haviam lhe roubado dinheiro. Em uma madrugada, a febre de Luísa piora.
Julião, chamado às pressas, diz que o estado inspira cuidados, mas que não há muito a fazer. Que ela repousasse absolutamente, que ninguém a incomodasse de nenhuma maneira e que esperassem. Era um tipo de excitação mental. Depois da saída de Julião, Jorge pensa em chamar o Dr. Caminha.
Naquele dia, Jorge recebe uma carta de Paris para Luísa. Como ela não deve ser incomodada, Jorge guardou-a no bolso do paletó.
“Atravessou um desejo rápido de abrir. Mas, conteve-se, atirou-a para cima da mesa, embrulhou devagar um cigarro.”
Jorge foi ver Luísa, que permanecia na sua modorra.
“Pensou, sem saber por quê, que outros a deveriam achar linda, desejá-la, dizer-lho, se pudessem...Para que escreviam da França? Quem?”
Podia ser algo importante.
Depois de muita indecisão, resolveu finalmente abrir o envelope:
“Minha querida Luísa,
Seria longo explicar-te, como só anteontem em Nice – de onde cheguei esta madrugada a Paris – recebi a tua carta, que pelos caminhos vejo que percorreu toda a Europa atrás de mim.
Como já lá vão dois meses e meio que a escreveste, imagino que te arranjaste com a mulher, e que não precisas de dinheiro. De resto se por acaso o queres, manda um telegrama e tem-lo aí em dois dias. Vejo pela tua carta que não acreditaste nunca que a minha partida fosse motivada por negócios. És bem injusta. A minha partida não te devia ter tirado, como tu dizes, todas as ilusões sobre o amor, porque foi realmente quando saí de Lisboa que percebi quanto te amava, e não há dias, acredita, em que não lembre do Paraíso. Que boas manhãs! Passaste por lá por acaso alguma vez? Lembras-te do nosso lanche? Não tenho tempo para mais. Talvez em breve volte a Lisboa. Espero ver-te, porque sem ti Lisboa é para mim um desterro.
Um longo beijo do teu Basílio.”
Jorge atira o papel para o alto e diz alto:
“ – Sim, senhor! Bonito!”
Encheu o cachimbo, deu alguns passos incertos e arremessou o cachimbo, despedaçando um vidro da janela. Teve ímpetos de loucura. Agarrou a carta para ir até o quarto de Luísa, mas lembrou-se do conselho de Julião sobre o repouso de Luísa, evitar qualquer emoção forte.
Pensou em “matá-la, sair de casa, abandoná-la, fazer saltar os miolos...”
Mariana veio avisar que a senhora o chamava.
Está mal e quer vê-lo. Logo nota que ele está aflito, quase chorando, e fica nervosa. Jorge não consegue resistir á repulsa que sente por Luísa e repele a mão da mulher. Chega a cerrar os dentes e resolve sair do quarto, mas é novamente chamado pela esposa. Não aguentando ajoelha-se aos pés dela chorando. É interrompido por Julião, que o retira do quarto e repreende-o severamente por aquela cena.
Jorge então entra no mais profundo sofrimento.
“(...) onde era o Paraíso, se havia uma cama, que vestido levava ela, o que lhe dizia, que beijos lhe dava”.
Olhava para Luísa e tinha crises silenciosas e angustiantes de ciúmes. De repente, entendia tudo que havia acontecido entre ela e Juliana. A morta possuía o segredo! Quando Sebastião chega, à noite como costumava, mostra-lhe a carta e tenta obter informações.
Sebastião finge desconhecer o assunto, tenta acalmá-lo, lembra-lhe que Luísa está muito doente.
“A doença, depois de uma marcha incerta durante três dias, definiu-se: eram crescimentos; enfraquecia muito, mas Julião estava tranquilo.”
Jorge passava os dias ao pé da esposa. D. Felicidade vinha pela manhã. Às três horas chegava o Conselheiro. Jorge continuava a atormentar-se com a traição da esposa. Fica a imaginar o que teriam feito. Deitava-se de roupa, no chão, ao lado da doente, mas quase não dormia. Passava a maior parte da noite lendo.
Ao fim de uma semana, Luísa melhorou, mas ainda estava muito fraca. No dia em que se levantou, desmaiou duas vezes.
Luísa percebe que o marido está diferente, mas faz planos para o futuro: tornar-se religiosa, não encontrar-se mais com Leopoldina...E a cada dia é mais afetuosa e carinhosa com Jorge, o que o deixa transtornado.
Um pouco melhor, Luísa comunica a Jorge seu desejo de retirar da sala o divã. Jorge sente uma pancada no coração. Sabia que tinha sido ali:
“Jorge não pôde destacar os olhos do divã. Veio mesmo sentar-se nele: passava a mão sobre o estofo às listras; e sentia um prazer doloroso em verificar que fora ali.”
Até que um dia Julião autoriza a presença de Luísa na reunião dos domingos à noite. O assunto era na estréia da peça do Ernestinho, que aparece para ver Luísa.
A peça obtivera êxito total, casa cheia todas as noites e muitas críticas favoráveis dos jornais. Ernestinho conta a Jorge que perdoara a heroína da peça, e lembram-se que Jorge era pela morte da esposa infiel. O Conselheiro o repreende, os demais o provocam e ele acaba confessando que mudara de ideia. Mas tem que retirar-se, nervoso, para o escritório. No fim da noite, Julião faz uma brincadeira com Ernestinho e o Conselheiro, que iam com ele na mesma carruagem:
“Ora aqui vou entre os representantes dos dois grandes movimentos de Portugal desde 1820. A Literatura – e cumprimentou Ernestinho – e o Constitucionalismo! – e curvou-se para o Conselheiro”.
CAPÍTULO XV
No dia seguinte, Jorge vai ao ministério e sente em todos os olhares uma intenção maligna. Era como se todos soubessem.
Na volta, Jorge encontra Luísa muito disposta. Ela o interroga sobre o porquê de seu semblante infeliz e ele, apesar de titubeante, resolve falar-lhe.
Diante da insistência da mulher, Jorge diz que vive num inferno há duas semanas. Estende a Luísa a carta de Basílio.
Luísa abre devagar, “viu a letra de Basílio, num relance adivinhou-a. Fixou Jorge um momento de um modo desvairado, estendeu os braços sem poder falar, levou as mãos à cabeça com um gesto ansioso como se se sentisse ferida, e oscilando, com um grito rouco, caiu sobre os joelhos, ficou estirada no tapete.”
Jorge grita, as empregadas da casa correm, alguém vai chamar Sebastião, que corre para buscar Julião.
Acordaram-na com éter, mas logo que viu Jorge, Luísa desmaiou novamente.
Ao acordar, chama insistentemente pelo marido, que lhe diz que a carta não interessa, jura amor e afirma não querer saber de nada. Ela apenas repete duas vezes o nome de Jorge e afirma que a cabeça dói. Julião tranquila a todos e sai:
“Luísa agitava-se no leito, apertando as mãos na cabeça, torturada pela dor crescente, cheia de sede.”
Julião volta e procura tratar á doente e percebe que qualquer movimento dava na nuca dores penetrantes. Fez aplicar compressas de água fria na cabeça, mas o delírio de Luísa aumentava, fazendo-a repetir os nomes de Leopoldina, Jorge e Basílio.
“Jorge temia que aquele delírio revelasse tudo a Julião, às criadas; tinha um suor à raiz dos cabelos – e quando ela, num momento, julgando-se no Paraíso e nas exaltações do adultério, chamou Basílio, pediu champanhe, teve palavras libertinas, Jorge fugiu da alcova alucinado, foi para a sala às escuras, atirou-se para o divã a soluçar, arrepelou-se, blasfemou.”
Julião confidencia a Sebastião que ela corre perigo, e avisa a Jorge que será necessário cortar o cabelo da paciente. Jorge não suporta ver a cena, esconde-se na sala e pede que o barbeiro faça logo o serviço. Percebendo que não havia melhoras, Jorge mandou Sebastião chamar o Dr. Caminha, médico que cuidara da mãe de Jorge e também de Luísa, quando esta tivera pneumonia no segundo ano de casada.
Luísa tem um momento de lucidez, chama por Jorge e nota que lhe rasparam a cabeça. Pouco depois, piora. Parece não sentir mais nada, seu corpo apenas rolava de um lado para o outro.
D. Felicidade aparece ao meio-dia e fica impressionada com o estado de Luísa. Põe-se a arrumar o quarto e a animar Jorge. O Dr. Caminha aparece, decide colocar um cáustico e diz que voltará mais tarde. Daí a pouco, Julião avisa a Sebastião que ela estava perdida. D. Felicidade ouve e fala em sacramentos. Julião repele a ideia e ordena outro cáustico. Jorge blasfema contra Deus.
"Será que adianta pensar em Deus e religião? Ele merecia aquilo que Deus lhe mandava? Deus era justo?”
A casa se agita, desorganizada; todos se mexem sem saber o que fazer. Julião faz lembrar a todos que há muito tempo não comiam. Vão todos comer uma sopa preparada por uma Joana chorosa. Jorge senta-se, não toca na comida; levanta-se e vai até o quarto. Atira-e de joelhos ao lado da cama e suplica a Luísa que melhore, levanta as mãos para o céu e pede a Deus que salve a sua esposa. Toca a testa de Luísa e acha-a muito fria. Corre desesperado para fora do quarto e encontra-se com o Dr. Caminha, que voltava para ver a paciente. Diz ao Doutor que ela parece morta.
Os dois médicos concordam que não há mais nada a fazer, mas Julião sugere ao descrente Dr. Caminha que tentem dar a ela uma dose de conhaque para “reativar o cérebro”. Tentam este último recurso, mas é em vão. O Doutor despede-se de Jorge dizendo que Luísa estava nas mãos de Deus.
Jorge volta para o quarto e ajoelha-se ao lado da cama, assistindo sua mulher morrer. D. Felicidade e Joana rezam.
O Conselheiro Acácio chega para solidarizar-se. É hora do crepúsculo.
No quarto, pouco depois, Julião faz gestos indicando a Sebastião que ela está nas últimas.
Sebastião retira Jorge do quarto. Na sala, o marido abre a caixa onde estão os cabelos cortados de Luísa. Volta para o quarto, mas Julião não quer que ele se aproxime do leito.
Não lhe diz nada, mas Luísa está morta. Jorge aproxima-se, beija Luísa e desmaia.
CAPÍTULO XVI
No dia seguinte, depois do enterro, Jorge despede as empregadas e vai para a casa de Sebastião.
Em uma das ruas da cidade, Julião e o Conselheiro se encontram. Comentam a morte de Luísa e o Conselheiro diz ao amigo que compusera o necrológico dela. Entram os dois no Café Tavares, para que o Conselheiro possa ler o escrito para Julião. Enquanto lê, irrita-se porque é interrompido o tempo todo por um homem que fala alto com o balconista, pedindo informações. Como tudo o mais que o Conselheiro escreve, o necrológio é um amontoado de lugares-comuns. Saindo do café, Julião conta ao Conselheiro que D. Felicidade entrara para um convento por sua causa. Descobrira o romance de Acácio com a empregada. Brinca, dizendo que isso acontecera porque ela também descobrira, como ele, que Acácio tinha dois travesseiros na cama e, sem dar tempo para respostas e rindo muito, deixa-o plantado na rua.
O Conselheiro retorna para casa. Pretende passar a limpo o necrológico. Terminava quando foi interrompido por Adelaide, que disse:
“ – Então, hoje, não se faz nenê?”
Depois de concluído o trabalho, recolhe-se, seguido pela Adelaide que bocejava.
“Estava cansada da constipação e – de uma hora de ternuras, que tivera à tardinha, com o louro e meio Arnaldo, caixeiro da Loja da América”.
Nesse mesmo momento, estão chegando a Lisboa Basílio e o Visconde Reinaldo.
Reinaldo chega maldizendo as estradas e as companhias de viagem do país. Só voltara porque tinha uma última propriedade para vender. Basílio, para concluir o negócio da borracha e para rever Luísa.
Dois dias depois, Basílio vai à casa de Luísa. Encontra-a fechada. O Paula da loja de móveis, interrogado por ele, diz-lhe que Luísa morrera e que poderia encontrar Jorge na casa de Sebastião, logo abaixo. Basílio sequer pensa em ir ver Jorge! Os vizinhos comentam sobre a falta de consideração do parente de Luísa. Todos dizem que rezam por ela à noite, menos Paula, que é radicalmente contra a Igreja e sente-se um tanto amargo com a desgraça que acontecera na rua. Enquanto as vizinhas conversam, diz-lhe:
“ – Sabem o que isto é? Sabem o que tudo isto é? – Fazia um gesto que abrangia o Universo. Fitou-as de um modo irado, e rosnou esta palavra suprema:
- Um monte de estrume!”
Basílio volta para o Hotel Central, encontra-se com Reinaldo na Rua do Alecrim, para quem conta o fato. Este lamenta, chamando Luísa de coitada. Foram descendo a rua até o Aterro. Falavam de Luísa.
Reinaldo diz:
“Não queria dizer mal da pobre senhora que estava naquele horror dos prazeres”, mas a verdade é que não era uma amante chic; andava em tipóias de praça; usava meias de tear; casara com um reles indivíduo de secretaria; vivia numa casinhola, não possuía relações decentes; jogava naturalmente o quino, e andava por casa de sapatos de ourelo; não tinha espírito, não tinha toilette...que diabo! Era um trambolho!
- Para um ou dois meses que eu estivesse em Lisboa...- resmungou Basílio com a cabeça baixa.
- Sim,, pra isso talvez. Como higiene! – disse Reinaldo com desdém.
(...)
Ao fundo do Aterro voltaram; e o Visconde Reinaldo passando os dedos pelas suíças:
- De modo que estás sem mulher...
Basílio teve um sorriso resignado. E,, depois de um silêncio, dando um forte raspão no chão com a bengala:
- Que ferro! Podia ter trazido a Alphonsine!
E foram tomar xerez à Taverna Inglesa."
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
“A nossa arte e a nossa literatura vêm-nos feitas da Europa, pelo paquete, e custam-nos caríssimos com os direitos de alfândega. Eu mesmo não mereço ser excetuado da legião melancólica e servil dos imitadores. Os meus romances, no fundo, são franceses, como eu sou, em quase tudo, um francês”, afirmou Eça de Queirós.
A intertextualidade entre “O Primo Basílio” e as obras “Madame Bovary” e “Eugénie Grandet” encontram-se não somente a identificação de tema, mas de concepção de obra, de construção e estrutura. A assimilação do assunto e a edificação do romance em torno do adultério, que tem como pressuposto um certo tipo de formação, como situação propícia o isolamento da personagem, como consequência a inevitável “queda”, seguem o encadeamento e a disposição do romance de Flaubert. Há ainda a possibilidade de cotejo entre diversas cenas e comportamentos: o procedimento das personagens na conquista amorosa, a cena do espelho (imediatamente posterior à do adultério), a proposta da fuga e a maneira com que os amantes a recusam, a febre cerebral, a cena da convalescença e a da descrição da morte.
Apesar de todas as semelhanças, a distinção de personalidade, aspirações e resoluções entre Luísa e Ema Bovary é decisiva para a afirmação literária de “O Primo Basílio”. O argumento de Machado de Assis é relevante: Luísa não tem pessoa moral. Há nela ausência de caráter, o que implica o predomínio do incidental sobre o essencial.
“Esse defeito” é valioso na medida em que o acessório, a posse chantagista das cartas comprometedoras, vai enriquecer o romance pela revelação de uma perfeita personagem dramática, esférica e surpreendente, bem ao gosto de Machado: Juliana. Por outro lado, ela decorrer da convicção taineana nutrida por Eça durante a sua primeira fase realista.
A supremacia do meio ambiente sobre a personagem, ou a do determinismo das causas que impede o livre arbítrio, parece ser a fronteira que separa o romance de Flaubert da leitura que Eça faz dele. A fragilidade de certa educação, a da senhora sentimental “arrasada de romance, lírica” e a colocação dessa personagem num ambiente burguês, que sobre excita, pela ociosidade, o seu temperamento e que a põe “nervosa pela falta de exercício e disciplina moral” são, para ele, elementos suficientemente nocivos e determinantes para não permitirem à personagem outro fim que o da “queda”.
Para Eça, os motivos que em Flaubert impeliriam Ema à catástrofe, o isolamento interior e as aspirações a uma ascendência social, não são significativos: os dados burgueses imprimidos por meio da formação e vivência providenciam, a priori, a coisificação da personagem.
É a leitura crítica acerca de Ema que não permite à Luísa ser uma pessoa moral: sua imagem é fragmentada e dispersa pelos vários espelhos que a circundam. Jorge faz dela uma distinta senhora burguesa; Basílio a identifica como mulher sofisticada, capaz de aventuras românticas; Juliana vai encontrar nela a sua vítima.
A discussão da peça “Honra e Paixão”, de Ernestinho é apresentada em duas cenas que abrem e fecham o episódio do adultério.
Na primeira cena, Ernestinho expõe o enredo e a objeção do empresário quanto ao final da peça: ele pretende retirar o tom “dramático” do desfecho e substituí-lo por um outro mais moderado, mais condizente à moral burguesa do tempo. Jorge, entretanto, não concorda:
“Se enganou o marido, sou pela morte. (...) É um princípio de família”.
O enunciado “moderado” da peça de Ernestinho, capaz de perdoar a “queda” da heroína, pactua com a moral burguesa da época. Ele se perfaz, assim, como o background literário e cultural com que Eça terá de se enfrentar para pôr em vigor sua ideologia realista: ele optará por matar em Luísa a moral burguesa e o romantismo.
Na última cena da reunião dominical, imediatamente posterior à descoberta da carta de Basílio por Jorge, comenta-se o triunfo da peça e o final “mais moral” que o autor lhe imprimira. Fala-se, então, que “Jorge é que queria que eu desse cabo dela”, ao que ele responde: “Mudei, conselheiro, mudei!”
No entanto, não é só com obras literárias que tratam do tema do adultério o romance dialoga; o autor vai aproveitar obras de outros tipos de manifestações artísticas: os dois grandes quadros com gravuras, “A Medéia”, de Eugène Delacroix e “Uma Mártir no Tempo de Diocleciano”, de Paul Delaroche, que retratam ambos, mulheres em situações de violência, o que é bem apropriado para uma casa de boa família em que o marido defende a morte para esposas infiéis.
Em outra cena, encontram os amigos reunidos na casa de Luísa e Julião a folhear a “Divina Comédia”, de Dante Alighieri e ilustrada por Gustave Doré, justamente em uma parte em que há a narração e ilustração do romance de Paolo e Francesca de Rímini, em que há um caso de adultério e morte da esposa adúltera.
Outra obra artística aproveitada por Eça é a ópera “Fausto”, de Gounod, compositor romântico francês. O compositor aproveitou do famoso “Fausto” de Goethe (1749-1832), o mais famoso poeta alemão. Nessa ópera narra o episódio que conta os amores de Margarida e Fausto, este faz um pacto com o diabo e seduz Margarida. Ela engravida, mata a criança assim que nasce, é presa por isso e morre; o irmão de Margarida, Valentin, também acaba morrendo por causa da desonra da irmã.
É importante lembrar que logo depois que Basílio seduz Luísa, ele vai ao piano e interpreta, justamente, essa ária. Quando Sebastião arma para que Luísa e Jorge passem a noite no teatro, o casal, coincidentemente, assiste “Fausto”.
A atuação de Luísa se deve a um tipo de formação burguesa aliada a um comportamento de leitura. Ela é vítima de suas próprias leituras, não pode discernir entre o verossímil e o real e Basílio parece emergir do universo fantasioso onde “ela achava o sabor poético de uma vida intensamente amorosa”.
Ela o vê como uma personagem que saído dos romances, e nas versões amorosas que ele lhe oferece, vê o adultério como “um dever aristocrático. De resto, a virtude parecia ser, pelo que ele contava, o defeito de um espírito pequeno, ou a ocupação reles de um temperamento burguês”.
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