A linguagem em Bakhtin: pontos e pespontos
A concepção de linguagem a partir dos estudos do Círculo bakhtiniano tem sido objeto de discussões ou servido de auxílio para investigações em diferentes áreas do conhecimento.
Entretanto, poucas áreas têm aprofundado esse conceito. A própria linguística, que tem como objeto de estudo a linguagem, pouco tem explorado tal concepção a partir desse viés. É nos estudos discursivos, aqueles que ultrapassam uma abordagem linguística estrita, e aí podemos incluir também os literários, que encontramos abordagens mais aprofundadas das colaborações bakhtinianas.
A teoria dialógica do discurso tem-se mostrado rica no desenvolvimento de várias noções que se referem ao estudo da linguagem e essa orientação pode ser observada na dimensão com que Bakhtin se dedica ao funcionamento da língua, principalmente no romance. Embora seu objeto de estudo tenha sido sobretudo a linguagem, a abrangência dessa teoria ultrapassa qualquer noção estreita dos estudos da língua e configura-se como uma dimensão filosófica no trato do objeto de reflexão.
Veja também: Coleção Teoria Do Romance Por Mikhail Bakhtin
Com isso, podemos observar que, se por um lado, essa orientação filosófica encontra eco em diversos segmentos de estudos, como na sociologia, na filosofia, na antropologia e na semiótica; por outro, convoca os estudiosos da linguagem a transitar em outras áreas, além das de origem, sem perder suas especificidades, para realmente poder entender a linguagem discursivamente.
No aprofundamento da concepção de linguagem na teoria bakhtiniana, temos observado que tal reflexão ao mesmo tempo que perpassa o conjunto da obra é privilegiada em noções particulares. A linguagem, assim como outras noções tratadas em Bakhtin, está em vários lugares e não se limita à “língua” ou à “linguagem”. Em outras palavras, não encontramos nos estudos do Círculo uma noção, como a de língua e linguagem, desenvolvida “linearmente” sem um movimento dialógico que exija atitudes responsivas do leitor, isto é, gestos de respostas à teoria em um movimento de aproximação ou distanciamento entre o que apreendemos e o que é apreendido. Tal leitura não é uma tarefa simples, mas sim desafiadora, pois requer atenção e ousadia para ir recompondo uma construção arquitetada em múltiplas vestimentas, em diferentes textos e épocas. Talvez seja por isso que ainda existam muitos espaços a serem explorados nessa teoria.
Assim sendo, tendo em vista a multiplicidade de possibilidades para olhar a teoria bakhtiniana e nela encontrar respostas possíveis para o procurado, temos o objetivo, nesta reflexão, de trazer para debate características sobre a concepção de linguagem a partir de dois eixos básicos, o dialogismo e o plurilinguismo. Estas noções, sem dúvida alguma, vêm sendo desenvolvidas por diferentes estudiosos da teoria em foco. A primeira principalmente, como marco da teoria dialógica, vem sendo explorada a partir de variadas articulações.
A segunda noção, no entanto, se comparada à primeira, ainda tem sido pouco desenvolvida no que se refere aos estudos linguístico-discursivos e, em consequência, na reflexão sobre a concepção de linguagem. Logo, a possibilidade de articulação entre ambas, dialogismo e plurilinguismo, para refletir sobre a linguagem apresenta-se como um campo fértil que nos instiga a empreender esforços no sentido de desenvolver um percurso teórico que, desencadeando em uma análise de uma situação concreta, seja promissor para a reflexão sobre a linguagem.
Para resgatar esse percurso teórico, como já adiantamos, não é possível, e nem faz parte de nossas aspirações, restringirmos a uma ou outra noção, já que ambas são por si só complexas e abrangentes. Por isso, a partir dos dois eixos em enfoque, organizamos uma reflexão mais ampla que leva ao desenvolvimento do objetivo proposto. Nessa perspectiva, recuperamos a concepção de linguagem a partir de quatro momentos interdependentes, seguidos das considerações finais. No primeiro momento, Dialogismo e relações de sentido, trazemos para discussão o dialogismo como “princípio” constitutivo das reflexões da teoria bakhtiniana, em especial da linguagem.
No segundo, Por uma abordagem enunciativo-discursiva, desenvolvemos um espaço de entremeio de noções inter-relacionais, que auxiliam no entendimento da linguagem em Bakhtin. No terceiro, Plurilinguismo e vozes discursivas, recuperamos a noção de plurilinguismo não só como uma diversidade de vozes sociais, mas principalmente como a dialogização de tais vozes – plurilinguismo dialogizado. A partir de então, no quarto momento, A linguagem como atividade responsiva: observando uma situação concreta, analisamos um processo interacional oriundo da esfera jurídico-trabalhista, refletindo sobre a concepção de linguagem na teoria dialógica do discurso.
1. Dialogismo e relações de sentido
Ainda que a rubrica “dialogismo” seja a que melhor “resuma” a teoria bakhtiniana, sua definição não se configura com facilidade. Referir-se a dialogismo é pressupor um “princípio”, uma “propriedade polivalente”, que constitui as noções desenvolvidas e se instaura como uma constante comunicação com o outro, cujo processo não comporta observações estanques.
É, nesse caminho, que não se concebe um fim absoluto ou uma conclusão definitiva sobre os variados fenômenos acontecidos na sociedade. Em outras palavras, o princípio dialógico traz em seu escopo uma abordagem da “não-finalização” e do “vir-a-ser”, configurando, com isso, um princípio da “inconclusividade”, da preservação da heterogeneidade, da diferença, da alteridade (BAKHTIN, 1997 [1929]).
Nesse âmbito, a teoria bakhtiniana volta-se para o estudo das particularidades da linguagem a partir do enfoque dialógico. Em Problemas da poética de Dostoiévski (1997[1929]), ao explicar que o seu objeto de estudo é o “discurso”, Bakhtin o define como “a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da linguística” (BAKHTIN, 1997 [1929], p. 181). Mostra, assim, que o interesse da sua teoria é por análises efetuadas a partir de relações dialógicas, no plano do discurso, e não por análises linguísticas, no “sentido rigoroso do termo”, no plano da língua. Propõe, então, uma nova disciplina - a metalinguística - como um estudo dos aspectos da vida do discurso que ultrapassam os limites da linguística estruturalista. No entanto, deixa claro que as análises linguísticas não podem ser ignoradas e seus resultados devem ser aplicados pelas pesquisas metalinguísticas.
Sob essa perspectiva, destaca o pensador russo: “as relações dialógicas são absolutamente impossíveis sem relação lógica e concreto-semântica, mas são irredutíveis a estas e têm especificidade própria” (BAKHTIN, 1997 [1929],p. 184). Esclarece, portanto, que o estudo da língua como relação lógica carece de abordagem enunciativa e que o estudo do discurso a partir das relações dialógicas é irredutível à logicidade. Observa-se, sob esse enfoque, que as relações dialógicas são apreendidas discursivamente, na língua enquanto fenômeno integral concreto, sem que se desconsidere as relações lógicas. Logo, a tensão entre relações dialógicas e lógicas indica que a linguagem somente tem vida na comunicação dialógica, comunicação de sentidos, que constitui o seu campo de existência. Essas observações são retomadas em O problema do texto (1992 [1959-1961]) quando Bakhtin destaca as relações dialógicas como relações de sentido entre os enunciados, sendo o sentido inscrito em vozes discursivas (sociais).
As observações precedentes são fundamentais para a compreensão do princípio dialógico da linguagem que se constitui por uma abordagem social que lhe é própria, um “compartilhar com o outro” que exclui qualquer possibilidade de abordagem individualista, pois se instaura na língua como um processo interacional, realizado na enunciação. Por conseguinte, tratar do dialogismo é, por um lado, descartar qualquer possibilidade de limitação e redução de sentidos, e, por outro, preservar as ressonâncias de outros ditos, já-ditos e/ou não-ditos na linguagem.
Os sentidos, a partir da abordagem dialógica, projetam-se como efeitos, sendo assim, irredutíveis a uma só possibilidade, apesar de em determinados contextos enunciativos haver sentidos predominantes. Com isso, os efeitos de sentidos existem a partir de construções discursivas, das quais o sujeito “não é a fonte de seu dizer”, uma vez que se constitui, de modo dinâmico, com a instituição histórico-social. Em outras palavras, o sujeito e os sentidos constroem-se discursivamente nas interações verbais na relação com o outro, em uma determinada esfera de atividade humana.
Essa reflexão está em consonância com a observação de Bakhtin (1992 [1952-1953]), em Os gêneros do discurso, segundo a qual “o objeto do discurso de um locutor, seja ele qual for, não é objeto do discurso pela primeira vez neste enunciado, e este locutor não é o primeiro a falar dele. O objeto, por assim dizer, já foi falado, controvertido, esclarecido e julgado de diversas maneiras, é o lugar onde se cruzam, se encontram e se separam diferentes pontos de vista, visões de mundo, tendências. Um locutor não é o Adão bíblico (...)” (BAKHTIN, 1992 [1952-1953] ,p. 319). O objeto do discurso, portanto, é o ponto de interseção em que se encontram diferentes opiniões, diferentes relações de sentido.
A linguagem, sob esse aspecto, constitui-se como uma reação-resposta a algo em uma dada interação e manifesta as relações do locutor com os enunciados do outro. Por isso, temos de considerar que o outro, no movimento dialógico, não é somente o interlocutor imediato ou virtual. É muito mais. O outro projeta-se a partir de discursos variados (passados, atuais, presumidos). São as outras vozes discursivas - posições sociais, opiniões - que vêm habitar de diferentes formas o discurso em construção. Com isso, o outro apresentase em diferentes graus de presença no enunciado, às vezes é visível, às vezes está escondido, mas sempre está lá; constitui um princípio alteritário.
Logo, a concepção de linguagem, a partir do enfoque dialógico, configura-se como uma recusa a qualquer forma fechada de tratar das questões da língua, pois sendo o dialogismo constitutivo, a “interação” com o outro é um pressuposto. Por isso, considerar a linguagem como discurso, em Bakhtin, é sobretudo reconhecer a sua “dialogicidade interna”, já que não é a forma composicional externa que vai determinar o teor dialógico (BAKHTIN, 1998, [1934-1935], p. 92). Aliás, podemos contrapor o dialogismo a um face-a-face estrito, sem outras implicações, uma vez que o princípio dialógico instaura-se como um espaço de inter-relações que ultrapassa uma abordagem “interacionista” que tenha como foco a situação em si mesma.
Nesse sentido, tomamos as palavras de Bakhtin acerca da dialogicidade interna do discurso e suas implicações quanto ao “já-dito” e à resposta antecipada, que traduzem, de certo modo, a tensão inscrita na produção discursiva: “O discurso vivo e corrente está imediata e diretamente determinado pelo discurso-resposta futuro: ele é que provoca esta resposta, pressente-a e baseia-se nela. Ao se constituir na atmosfera do “já-dito”, o discurso é orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta que ainda não foi dito, discurso, porém, que foi solicitado a surgir e que já era esperado” (BAKHTIN, 1998 [1934-1935, p. 89).
Podemos perceber, a partir das observações precedentes, que o enunciado se constitui em um complexo processo interacional em que lhe é conferido avaliação social, impossibilitando, desse modo, a redução dos estudos linguístico-enunciativos a um sistema de signos abstratos. Sendo assim, a linguagem deve ser considerada como um fenômeno que se institui na tensão entre um projeto discursivo de um sujeito e as coerções próprias de uma dada esfera de interação verbal.
2. Por uma abordagem enunciativo-discursiva
Tratar da concepção de linguagem em Bakhtin requer que se considere que, embora o paradigma bakhtiniano se contraponha a tendências redutoras da sistematização da língua, não desconsidera a importância de um sistema diferenciado de signos para compreender a complexidade enunciativa de situações particulares. É, sobretudo, uma leitura diferente de um sistema em que os signos existem ampliadamente como signos ideológicos e dialógicos a partir de uma inscrição subjetiva. Em outras palavras, há um sistema ampliado, cujos signos existem somente em interação verbal, como enunciados, em gêneros discursivos, que possibilitam a compreensão de diferentes organizações enunciativo-discursivas, assim, como a compreensão das características repetíveis, formais da linguagem, que se convertem em diferentes sentidos.
Podemos entender, nesse caminho, que Bakhtin é o precursor de uma teoria enunciativo-discursiva que considera a linguagem como atividade, instituída em um processo concreto em que o signo se instaura ideológico e dialogicamente. Não há, assim, qualquer movimento de apropriação de signos linguísticos em um sistema fechado, uma vez que o signo somente existe em circulação. No dicionário, há virtualidades, potencialidades que, em uso, são dialogizadas e ideologizadas.
A linguagem do ponto de vista bakhtiniano tem vida em um espaço enunciativo-discursivo e, com isso, amplia-se mais ainda ao ser considerada não como um privilégio do verbal, ou seja, todas as manifestações que tenham a interferência do homem constituem-se como linguagem, enunciado, texto. Essa posição é clara em O problema do texto (BAKHTIN, 1992 [1959-1961]), já que todo texto tem sujeito, é enunciado, e aglutina o verbal e o extra-verbal. Além disso, a constituição em texto é uma condição para haver objeto de estudo e de pensamento.
Apesar de a linguagem não se restringir ao verbal nas noções desenvolvidas pelo Círculo bakhtiniano, é dada relevância à palavra como fenômeno ideológico por excelência, isto é, estar sempre orientada socialmente para um interlocutor real ou virtual. Essa observação é ressaltada em Marxismo e filosofia da linguagem (BAKHTIN & VOLOCHINOV, 1995 [1929]) quando se considera a palavra como o modo mais puro e sensível das transformações sociais. Nessa perspectiva, a palavra aglutina o verbal e o não-verbal e constitui-se como enunciado, pois recebe acento de valor. Então, se, de um lado, a palavra vive sob o signo da alteridade ao ser inscrita avaliativamente, de outro, toda manifestação humana, ao possuir acento avaliativo, também se inscreve como enunciado, como linguagem.
É, a partir dessa concepção, que entendemos mais facilmente o enunciado como unidade real - não uma convenção - da comunicação verbal, uma unidade complexa de observação da língua em situação concreta (BAKHTIN, 1992 [19521953], 1992 [1959-1961]). Com isso, Bakhtin contesta toda abordagem limitada por relações lineares entre signos abstratos e funda uma nova perspectiva de relações complexificadas que consideram uma atitude dialógica para com a língua. O signo bakhtiniano, então, constitui-se como uma atitude responsiva ativa de um determinado sujeito em relação a algo e, para ser compreendido, exige também uma atitude dialógica de um outro sujeito, o qual produz signos, num exercício de aproximação entre o signo em observação e outros já conhecidos.
Dentre a ampla (e densa) pertinência da reflexão bakhtiniana sobre o signo, a de considerá-lo ideológico – apresentar índices de valor de cunho social - é a que possibilita, juntamente com a noção de dialogismo, a ampliação da noção de signo linguístico, proporcionando uma nova relação com o sistema. Sistema este que deixa de ser linguístico estrito, no sentido de possuir unidades significantes neutras e sem expressividade, para ser linguístico-ideológico-dialógico, no sentido de apresentar signos que se formam como enunciados (imbricam verbal e não-verbal, dito e não-dito) e que implicam uma atitude ativa responsiva do sujeito a qual desencadeará outros enunciados. Sendo assim, entendemos que esse sistema ampliado, dialógico, se inscreve em um sistema enunciativo-discursivo, uma vez que se constitui de uma complexidade de enunciados que estão em relação dialógico-discursiva.
Tais observações possibilitam compreender que o funcionamento de todo discurso está vinculado a determinadas coerções enunciativas (situacionais, sociais, históricas). Sob esse aspecto, as formas discursivas (enunciados) do sistema enunciativo-discursivo inscrevem-se com uma estabilidade relativa – os gêneros discursivos – e orientam os sujeitos à produção discursiva em situação concreta (BAKHTIN, 1992 [1952-1953]).
Assim, a enunciação organiza-se no meio social que envolve o indivíduo, nas relações dialógicas que se instauram. Porém, há uma parte mais estável que se indissocia de outra mais instável que deve ser observada na constituição da linguagem: a significação e o tema (BAKHTIN & VOLOCHINOV, 1995 [1929]). Enquanto a significação configura-se como uma dimensão mais estável, representada pela materialidade linguística da produção enunciativa, o tema configura-se como uma dimensão mais variável, como a própria enunciação / enunciado, ou seja, é único e não-reiterável. Logo, o tema compõe-se por aspectos verbais e não-verbais. Enquanto os verbais são recuperados pela significação, os aspectos não-verbais são recuperados, via entonação expressiva, pela dimensão histórico-social engendrada.
Com isso, podemos compreender que a significação e o tema vivem interdependentemente (sem relação de causa e efeito) na enunciação, em cujo espaço gravitam valores diversos. Nesse espaço, a inter-relação significação / tema é uma dicotomia desfeita na teoria bakhtiniana, uma vez que a significação no enunciado / enunciação se constitui indissociavelmente do seu tema. O tema depende da significação e vice-versa, porém, como um não é um simples reflexo do outro, as “mesmas palavras” significam diferentemente, ou seja, elas ganham vida a partir de apreciações sociais valorativas criadas no processo enunciativo, que apontam para diferentes aspectos históricos, nem sempre sinalizados linguisticamente, mas convocados na enunciação.
Portanto, a linguagem a partir da abordagem dialógica não pode ser estudada fora da sociedade, uma vez que o enunciado, como unidade concreta da interação verbal, tem estabilidade provisória e traz em sua constituição características de cada situação de enunciação em que é produzido e circula. Além disso, o enunciado configura-se como um elo numa cadeia complexa de outros enunciados, ou seja, está repleto de ecos de outros enunciados, respondendo a algo e antecipando um discurso-resposta não-dito, mas solicitado no direcionamento a um interlocutor (real ou virtual). O enunciado é, por conseguinte, um signo ideológico, dialógico, único, irrepetível e instaura-se diferentemente em cada interação.
3. Plurilinguismo e vozes discursivas
Conforme o encaminhamento empreendido nesta reflexão, podemos perceber que a concepção de linguagem desenvolvida na teoria bakhtiniana prima pela dialogicidade, pela dinamicidade. Nessa esteira, ao trazermos para reflexão o plurilinguismo, passamos a enfatizar a dimensão do “plural”, do “pluralismo”, também como constitutiva da linguagem.
A iniciativa de trazer o plurilinguismo para debate deve-se, principalmente, à riqueza dessa noção que se, por um lado, tem sido pouco desenvolvida nos estudos linguístico-discursivos, por outro, tem muito a nos dizer, no entendimento da linguagem como objeto de estudo e também como objeto de ensino. Dentre os trabalhos que enfocam a questão do plurilinguismo, Brait (1994), em As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso, faz uma importante leitura da obra bakhtiniana em que contempla, dentre outros aspectos, a relação entre dialogismo, polifonia e intertextualidade com vozes discursivas, ressaltando o caráter de “inconclusividade” do enunciado. Faraco (2003), por sua vez, em Linguagem & diálogo: as idéias linguísticas do círculo de Bakhtin, ressalta a importância do plurilinguismo (heteroglossia) dialogizado no que se refere à concepção de linguagem na teoria bakhtiniana.
A relação entre o dialogismo e o plurilinguismo, na reflexão sobre a linguagem, antes de mais nada, converge no que tange a uma postura de questionamento da “unidade” em relação à pluralidade; de questionamento das “exclusividades” em relação às possibilidades; de questionamento do “acabado” em relação ao inacabado. A questão principal gira em torno do caráter dinâmico da língua/linguagem, que não se constitui unitariamente, mas sim como uma arquitetura de vozes discursivas/sociais.
O pluralismo linguístico, também chamado de heteroglossia e de plurilinguismo, em especial o plurilinguismo dialogizado, que “é o verdadeiro meio da enunciação” (BAKHTIN, 1998 [1934-1935], p. 82), aproxima-se, assim, da plurivocidade, isto é, da tessitura de vozes sociais que constitui o espaço enunciativo-discursivo. O plurilinguismo na teoria dialógica do discurso, ao contrário de abordagens conservadoras, não se restringe à diversidade de “línguas nacionais”, mas sim preserva a diversidade de vozes discursivas – posições que constituem o discurso – como característica fundamental para a concepção de linguagem. É o próprio dialogismo incorporado no discurso, a dinâmica entre vozes sociais engendradas em um espaço inter-relacional nos limites de uma “língua nacional”.
Essa característica da linguagem de ser “plural” rompe com a hegemonia de qualquer “linguagem única da verdade” ou da “língua oficial” em dada sociedade. É uma dimensão que rejeita a “ossificação e a estagnação do pensamento” (CLARK & HOLQUIST, 1998 [1984], p. 49) a uma só possibilidade, como a de uma “língua padrão”, “culta”, sem considerar as variedades.
As reflexões referentes ao plurilinguismo, consubstanciadas no ensaio O discurso no romance (BAKHTIN, 1998 [1934-1935]), publicado em Questões de literatura e estética: a teoria do romance (BAKHTIN, 1998 [1975]), são essenciais na compreensão da linguagem como discurso, não se restringindo aos estudos literários. O plurilinguismo, desse modo, configura-se como uma proposta de deslocamento dos estudos estritamente literários para os estudos discursivo-literários. Assim, é uma noção ampla que possibilita a transposição para os estudos linguístico-discursivos, sem perda de sua excelência, uma vez que se coaduna à concepção de linguagem como essencialmente heterogênea e dinâmica.
O plurilinguismo dialogizado pressupõe uma variedade de línguas/ linguagens e, com isso, diferentes estruturas enunciativas se confrontam tendo em vista a diversidade de coerções nas relações sociais. Essa noção, portanto, recusa qualquer preponderância lingüística excludente e instaura a discursividade. Aliás, no desenvolvimento dessa concepção com relação ao romance, podemos observar um movimento de ruptura da estilização de uma linguagem individualizada do romancista, apreendida a partir de análises linguísticas, como uma espécie de identidade cristalizada que não considera as diversidades sociais existentes.
Assim, ao tratar da abordagem plurilinguística, Bakhtin valoriza uma perspectiva diferente de olhar os estudos literários, linguísticos e filosóficos da linguagem. O romance, em especial, passa a ser observado discursivamente a partir da combinação de diferentes linguagens e estilos: “a verdadeira premissa da prosa romanesca está na estratificação interna da linguagem, na sua diversidade social de linguagens e na divergência de vozes individuais que ela encerra” (BAKHTIN, 1998 [1934-1935], p. 76). Desse modo, a particularidade básica do romance passa a ser o diálogo instaurado por linguagens diversas, descentralizadoras.
É interessante observar, a partir de então, o movimento de resgate do “plural” como um entremeado de discursos ordinários, isto é, discursos do dia-a-dia, já que o romance reconstitui passagens do cotidiano encarnadas em linguagens diversificadas. Todo esse movimento enfatiza não apenas o tratamento dado à linguagem, ao enunciado/discurso, mas também a valorização da diversidade de vozes discursivas que a constituem.
A língua não se reduz a um sistema padronizado, mas sim se materializa em vozes sociais que se cruzam, em diferentes dialetos, jargões profissionais, linguagens de gerações familiares. Há linguagens de momentos, de lugares, transitórias, que possuem estruturas e finalidades próprias a determinados contextos. A linguagem, assim, está em movimento, ou seja, há uma orquestração discursiva que a constitui.
Nesse âmbito, o plurilinguismo é dialogizado tendo em vista a linguagem existir a partir de signos concretos inter-relacionais, os enunciados. Nada é estanque. Ressalta-se, então, a pressuposição da elasticidade da linguagem em diferentes ligações e co-relações a situações concretas. Dito de outro modo, o plurilinguismo configura-se como uma interação entre línguas sociais, isto é, traz em seu escopo a preservação das variedades concretas. Com isso, repudia tendências linguísticas voltadas para a “centralização”, a “estabilidade” e a “objetividade”, que desconsideram a “ambiguidade”, a “polissemia” e a “ideologia” como constitutivas.
Assim sendo, e essa é uma contribuição inestimável do estudo sobre o plurilinguismo, a linguagem constitui-se num espaço de tensão entre vozes sociais, num movimento dialógico que indissocia forças interdependentes, não-dicotômicas: as forças centrípetas e as centrífugas. Ao lado da centralização verbo-ideológica e da união, caminham ininterruptos os processos de descentralização e desunificação. Enquanto as forças centrípetas se empenham em manter a “unidade” e procuram resistir às divergências, as forças centrífugas se empenham em manter a variedade, as diferenças.
A língua é ideologicamente saturada, ou seja, constitui-se como uma concepção de mundo e um modo de ter atitudes ativas, responsivas, em cada esfera de atividade humana. Nessa perspectiva, a língua alterna-se em movimentos dialógicos que indissocia forças centrípetas e centrífugas na enunciação do sujeito.
Com isso, não há uma enunciação que não pertença a uma língua, com forças centrípetas próprias (centralizadoras, que procuram apagar as outras vozes sociais), e ao plurilinguismo social e histórico, com forças centrífugas (descentralizadoras, que convocam outras vozes sociais). Tal movimento de tensão é próprio da linguagem, é próprio do discurso. Enunciar é dialogar e, nessa atitude responsiva, uma combinação de características linguísticas ganha vida e forma em um processo dialogizado, concreto, pluriacentuado.
Sendo assim, o plurilinguismo é próprio da linguagem, pois várias vozes sociais entram em concorrência na enunciação. No entanto, há uma estratificação em gêneros discursivos, cujos elementos formais (lexicológicos, semânticos, sintáticos etc.) estão imbricadamente organizados em função de um sistema de acentuação próprio de uma dada esfera de atividade. Logo, qualquer superfície discursiva “idêntica” carrega-se de variados conteúdos, dependendo do gênero a que responde e do direcionamento dos diferentes acentos valorativos empreendidos.
A estratificação da língua, seja em gêneros, seja em linguagens diversas (do advogado, do camelô, do médico, do comerciante, do político, do professor), pode ser apreendida por índices variados, como pela expressividade, pelo projeto discursivo do sujeito, observados nas formas discursivas em que se materializam. Todavia, é importante observar que a estratificação não determina um isolamento, pois sempre a linguagem será dialógica, isto é, ressoarão outros discursos (vozes) em sua tessitura. Essa é uma característica fundamental da concepção do plurilinguismo em Bakhtin, uma vez que ultrapassa estudos conservadores que reduzem as variedades linguísticas a determinados aspectos sociais e não consideram o perpassar dialógico que, por si só, não aceita um simples “enquadramento”.
Maria da Glória Corrêa Di Fanti (UNISINOS)
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